Ted Hughes e Sylvia Plath: ele disse-lhe que queria que ela morresse, ela suicidou-se

Cartas até aqui inéditas de Plath para a sua psiquiatra e amiga revelam novos pormenores sobre a atormentada relação dos dois poetas. Hughes terá chegado a agredi-la fisicamente e a dizer-lhe que desejava a sua morte. A culpa acompanhou-o até ao fim. Segue-se uma batalha legal.

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Sylvia Plath e Ted Hughes fotografados na sua lua-de-mel em Paris, em 1956 GETTY IMAGES

Foram escritas entre 18 de Fevereiro de 1960 e 4 de Fevereiro de 1963, uma semana antes da sua morte. A destinatária é Ruth Barnhouse, a psiquiatra que começou a tratá-la quando tentou o suicídio pela primeira vez, em 1953, e que viria a ser uma presença constante na sua vida. A remetente é Sylvia Plath, a norte-americana que escreveu os poemas de Ariel (1965) e o romance autobiográfico A Campânula de Vidro (1963), autora que a maioria dos leitores conhecerá também dos muitos textos e livros publicados sobre a sua relação atormentada com o poeta britânico Ted Hughes, o homem que, em fim de vida, se confronta com o passado em Cartas de Aniversário (1998).

São 14 cartas inéditas que reapareceram em Março e em que Plath diz, entre outras coisas, que Hughes lhe bateu dois dias antes de ela perder arequele que deveria ter sido o segundo filho do casal e que o poeta chegou a dizer-lhe que queria vê-la morta: “Tenho a consolação de ser, sem dúvida, a única mulher a conhecer os primeiros anos de um génio charmoso. Na minha pele.” Cita-a o tablóide The Daily Mail, num dos raros excertos publicados pela imprensa britânica, que tanta atenção tem dedicado a estes textos dirigidos por Plath à sua confidente, a mesma que, segundo o jornal The Telegraph, dissera pouco antes de morrer, em 1999, ter queimado todas as cartas que recebera da poetisa que se suicidou em 1963, aos 30 anos.

Afinal, a terapeuta conservou-as e, mais tarde, cedeu-as a Harriet Rosenstein, uma académica da área dos estudos feministas que nunca chegou a escrever a sua biografia sobre Plath. Foi esta investigadora que no mês passado tentou vendê-las em Nova Iorque, através do livreiro-antiquário Ken Lopez, que as incluiu num lote de vários documentos a que atribuiu o preço de 820 mil euros.

Parte das cartas para Ruth Barnhouse, a amiga que fazia questão de dizer que Hughes era um homem “mau”, são descrições do quotidiano de Plath em Inglaterra, explicou Lopez ao Telegraph, mas nas 45 páginas que a poetisa bateu à máquina há outras particularmente “dramáticas”: “Depois do casamento se desmoronar e de ela descobrir a infidelidade de Ted Hughes, tornam-se muito dramáticas e muito pessoais.”

Ken Lopez tentou vendê-las ao Smith College, no Massachusetts, a faculdade onde Plath estudou e onde está depositado o arquivo de Barnhouse, mas as negociações falharam. Foi esta instituição que fez com que a venda em Nova Iorque fosse suspensa e é ela que agora lidera a batalha legal pelas cartas, defendendo que fazem parte do espólio da psiquiatra que serviu de modelo a Dra. Nolan, personagem de A Campânula de Vidro (editado em Portugal pela Relógio D’Água e pela Assírio & Alvim).

Ted Hughes (1930-1998) já não pode defender-se das alegações de violência doméstica feitas por Sylvia Plath (1932-1963), mas a organização encarregue de tratar do espólio do poeta emitiu um comunicado a pedido da sua viúva, Carol Hughes, dizendo que “são um absurdo” e “chocantes” para todos aqueles que o conheceram bem.

Atracção imediata

Ted Hughes e Sylvia Plath são dois dos maiores poetas de língua inglesa do século XX, mas a relação turbulenta que ambos viveram condiciona a leitura de toda a sua obra e acompanhou o poeta até ao fim.

Os dois encontraram-se quando estudavam na Universidade de Cambridge, em 1956. Hughes era já um poeta que despertava interesse e Plath queria conhecê-lo. Entre os dois a atracção foi imediata e, em apenas quatro meses, casaram-se. A escritora americana, que tinha um longo historial de depressão que conduzira já a várias tentativas de suicídio, só lhe falou da doença quando o autor de The Hawk in the Rain (1957) era já seu marido.

Os primeiros tempos foram de grande criatividade para ambos, mas, depois de um casamento de seis anos e meio e de dois filhos, Frieda e Nicholas, a sua relação acabou, com Plath a descobrir que Hughes a traía com Assia Wevill, a alemã que acabou por fazer com que o poeta saísse de casa, no Inverno de 1962.

“Em muitos aspectos, é a mulher mais dotada, capaz e admirável que alguma vez conheci, mas é-me impossível viver casado com ela”, escreverá Ted Hughes ao irmão, Gerald, poucos meses antes do suicídio de Plath.

Para os especialistas na vida e obra da poetisa norte-americana, as cartas reaparecidas no mês passado são uma fonte riquíssima de informação. Podem, sobretudo, preencher algumas lacunas no que diz respeito à longa batalha que travou com a depressão e são ainda mais importantes porque dizem respeito aos últimos anos, período em que manteve um diário (hábito que, aliás, tinha desde os 11 anos) que não chegou até nós, já que Ted Hughes o destruiu logo após a morte da autora, alegando ser a única maneira de proteger os dois filhos do seu conteúdo. Familiares e amigos de Plath, que sempre o responsabilizaram pela instabilidade mental da poetisa e, em última análise, pelo seu suicídio, nunca lhe perdoaram que o tivesse feito.

Frieda e Nicholas só tiveram conhecimento das circunstâncias da morte da mãe quando eram já adolescentes e ambos foram afectados pela depressão, como ela (Nicholas, um biólogo marinho e professor universitário, enforcou-se em 2009).

O que aconteceu naquela noite?

Ted Hughes, que já não assistiu ao suicídio do filho, publicou em 1998 duas obras em que fala da relação destrutiva que viveu com a autora (Cartas de Aniversário, editado em Portugal pela Relógio D’Água, e Howls and Whispers), e sobretudo dos últimos tempos antes daquela manhã de 11 de Fevereiro de 1963 em que Plath foi encontrada morta na cozinha da sua casa. Na véspera selara cuidadosamente o quarto dos filhos, que já dormiam, com toalhas e roupas molhadas, deixando-lhes a janela aberta e leite junto às camas, para que o tomassem ao acordar. Frieda tinha dois anos, Nicholas um. Em seguida enfiara a cabeça no forno com o gás aberto.  

Foi só em 2010, mais de dez anos depois da sua morte, que ficaram a conhecer-se as últimas palavras de Hughes sobre aquele que foi um dos casamentos mais destrutivos da literatura do século XX (outros alegarão que também houve nesta relação um motor criativo, é certo) com a publicação de Last Letter, que descreve o que aconteceu nos três dias antes da morte de Plath.

Last Letter é uma confissão na forma de um longo poema de 150 linhas sucessivamente reescrito e nunca acabado, que Plath não chegou a ler. Nele Hughes conta que a autora lhe terá escrito, a 8 de Fevereiro, uma carta que ele recebeu no próprio dia, uma sexta-feira, e que o levou a casa da mulher de quem se separara, onde ambos terão tido uma enorme discussão. Nessa carta Plath não falava da morte, mas da intenção de sair do país e de não voltar a vê-lo.

Hughes passou esse fim-de-semana com uma amante – precisamente no mesmo quarto de Rugby Street onde fizera amor com Plath pela primeira vez – e o resto da vida atormentado pelo suicídio da mulher e pelas dúvidas que aqueles últimos dias lhe deixaram, disse em 2010 ao The Guardian o crítico Al Alvarez, amigo íntimo dos dois. Teria ela tentado falar-lhe no fim-de-semana em que ele esteve fora de casa? Teria ela tentado dizer-lhe alguma coisa que o fizesse prever o que tencionava fazer? Poderia ele tê-lo impedido?

“O que aconteceu naquela noite? A tua última noite.”, escreve Hughes no começo deste poema que termina assim: “Então, uma voz, como uma arma escolhida/ ou injecção calculada,/ friamente deixou essas cinco palavras/ no mais fundo dos meus ouvidos: ‘A sua mulher está morta.’” (versos traduzidos livremente a partir do original publicado em vários jornais e sites ligados ao casal de poetas, já que não está editado em Portugal).

Como era ainda legalmente casado com Sylvia Plath à data do seu suicídio, Ted Hughes recebeu em herança todo o espólio da mulher, dedicando boa parte da sua vida à publicação rigorosa dos seus inéditos, reunidos em volumes como Crossing the Water (1971) e The Collected Poems (1981), este último premiado com o Pultizer, o primeiro atribuído a um poeta a título póstumo.

A sua dedicação à obra de Plath não impediu que, nos anos 1970, Ted Hughes, possivelmente um dos homens que as feministas mais odeiam embora tenham sido muitas as mulheres a deixarem-se encantar por ele, fosse muitas vezes interrompido nas sessões públicas em que lia os seus poemas por gritos de “assassino”, lembra o diário britânico The Guardian.

Nunca se saberá que quota parte de responsabilidade tem o poeta na morte daquela que foi, dizem biógrafos, familiares e amigos, a mulher da sua vida. Assia Wevill, a amante por quem a trocou, está entre os que achavam que Hughes não conseguira libertar-se da sua memória, o que terá levado a que esta alemã também se suicidasse em 1969 – com gás, como Plath –, tirando a vida à filha de ambos, de quatro anos, que todos tratavam por "Shura".

Cartas de Aniversário (1998), um imenso sucesso de público e de crítica (recebeu, entre outros, o prestigiado Prémio T.S. Eliot e vendeu mais de meio milhão de exemplares), é um dos derradeiros confrontos de Hughes com essa memória. O poeta dedica-o a Frieda e Nicholas, talvez porque os poemas nele publicados são uma tentativa de lhes explicar o que aconteceu.

Toda a verdade?

Dizem os especialistas que as cartas de Sylvia Plath a Ruth Barnhouse podem lançar agora alguma luz sobre o estado de espírito da poetisa à medida que o fim se aproximava. É possível que venham a integrar a obra Letters of Sylvia Plath (edição Faber & Faber), cujo primeiro volume deverá chegar às livrarias a 5 de Outubro.

“É possível que Plath visse nas cartas à dra. Barnhouse uma catarse” que lhe permitia escrever “poemas tão explosivos e duradouros” como os que podem ler-se na colectânea Ariel, disse ao Guardian o co-editor de Letters of Sylvia Plath, Peter Steinberg, explicando que a obra inclui correspondência que trocou com 120 pessoas, devidamente anotada.

“O trabalho do biógrafo nunca acaba”, escrevia Jonathan Bate, biógrafo de Hughes, no Guardian, a propósito das pontas soltas e das perguntas que ficam por responder sempre que se tenta contar a história de alguém. “Todas as vidas têm os seus segredos e muitas as suas mentiras. A maioria vai connosco para a cova”, continuava, “mas, quando se trata de génios criadores que transformam a escória da sua experiência do dia-a-dia em ouro de uma arte duradoura, é vital que as gerações futuras tenham acesso à verdade, a toda a verdade e nada mais do que a verdade”.

Neste caso como noutros a verdade vai-se construindo. Não será certamente a última vez que vemos a palavra “inédito” associada a Sylvia Plath e a Ted Hughes, não será a última vez que documentos inéditos servem de pretexto a um artigo que volta a falar deles e do que começou por ser uma arrebatadora história de amor e se transformou numa relação torturada que acabou numa tragédia carregada de dúvidas, remorsos e culpa. 

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