A morna suspende o tempo que o hip-hop faz avançar

No arranque do Atlantic Music Expo, emergiu a inevitável questão do choque entre tradição e modernidade. Mas talvez a emergência do hip-hop cabo-verdiano não seja uma verdadeira ameaça para a morna e o funaná. O futuro, parece perceber-se, poderá ter muitas respostas diferentes.

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Em Cabo Verde, os mais novos são seduzidos sobretudo pelos modelos musicais associados ao hip-hop ADRIANO MIRANDA
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Hélio Batalha: “É uma necessidade e um objectivo meu e de outros MC trazer outra sonoridade, uma outra abordagem com samples mas também com sons crioulos, guitarra, gaita ou cavaquinho" DR
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Lucibela: "Já não são muitos os jovens a fazer morna e coladeira. Mas temos de dar continuidade, não podemos deixar morrer, porque esta música é nossa" DR

“O funaná é a música mais forte de Cabo Verde”, diz Carlos Bino Lopes, uma das vozes do mítico grupo Ferro Gaita no documentário Storias di Nos Muzika. A declaração enfática do músico cabo-verdiano não surpreende: a sua defesa de uma matriz tradicional que muitos consideram estar ameaçada com a entrada em cena de novas linguagens musicais importadas um pouco de todo o mundo é, afinal, comum a quase todos os géneros que Valério Lopes e João Rosa registam no seu filme, destinado a promover “um melhor entendimento da cultura de Cabo Verde”, explica Rosa ao PÚBLICO.

É uma forma estimulante de entrar na programação do Atlantic Music Expo (AME), evento que desde 2013 junta profissionais da música – de criadores e programadores a agentes, produtores e jornalistas – na Cidade da Praia, em Cabo Verde, levando o mundo a prestar uma atenção mais cuidada ao extraordinário fenómeno da riqueza musical de um território com 500 mil habitantes, ao mesmo tempo que a música local também se abre a esse contacto com outras linguagens e formas de pensar, exportar, promover, trocar e fazer música.

Sem fazer a defesa de qualquer género musical em concreto, Storias di Nos Muzika reclama um papel pedagógico, “uma forma de ensinar sobre as origens e as vertentes da música cabo-verdiana”, dando espaço e voz aos fazedores de funaná, morna, coladeira ou batuque, com um enquadramento histórico e sociológico que permite compreender a música para além da mais enfeitiçada resposta emocional a estes sons. Quase sem esforço, no entanto, o filme parcialmente exibido na manhã de terça-feira no Palácio Ildo Lobo, centro nevrálgico dos showcases e das conferências do AME, revolve uma eterna questão das músicas tradicionais – a sua relação com novos protagonistas e novos olhares sobre o reportório popular.

Se há quem aponte a Katchas, fundador do grupo Bulimundo, a última grande revolução no funaná, ao libertar a sonoridade para ser interpretada por instrumentos eléctricos do rock e ser subtilmente atravessada por conhecimentos do jazz que foi colher na Holanda, o filme destapa também alguma tensão com a música abraçada pelos mais novos, seduzidos sobretudo pelos modelos ligados ao hip-hop e não tão convencidos em dar continuidade a uma música de matriz tradicional. “Alguns puristas que não querem aceitar as novas influências, quando até se vê que as diferentes influências na música de Cabo Verde já existiam no passado”, sustenta João Rosa, “dizem que esta nova música é tocada por cabo-verdianos mas não é cabo-verdiana”. A discussão é comum a muitos outros lugares do planeta e envolve quase sempre a mesma paixão pela defesa de uma identidade local sob ameaça e o inevitável choque geracional.

Golpe de estado mental

Durante a tarde e a noite de terça-feira, o palco instalado na Praça Luís de Camões vai repartindo a atenção com concertos na Rua Pedonal, a menos de cinco minutos a pé, e é fácil perceber a movimentação pendular entre os dois pontos assim que termina uma actuação e a atenção da multidão se desloca de imediato para o outro ponto de animação. Nesse palco da praça, onde na noite anterior os Dead Combo assinaram um belíssimo concerto e os Bulimundo deram uma notável lição de funaná – tão arrebatadora que nem o Presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, se coibiu de fazer o gosto ao pé e ensaiar uns passos de dança com a cantora Lura –, o AME recebe os participantes do encontro LusAfro. São músicos destacados de uma cena urbana luso-africana que durante uma semana partilharam as suas histórias, participaram em workshops e começaram a lançar os alicerces para um álbum de colaborações de gente vinda de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Alemanha, Portugal ou Cabo Verde, e que junta Tony Amado, Kalaf Epalanga, Dama do Bling, DJ Marfox, Batchart, Gato Preto, Buruntuma, Ceuzany, Dino D’Santiago, Conductor, Fattú Djakité, Rapaz 100 Juiz ou Hélio Batalha.  

Hélio Batalha e Rapaz 100 Juiz são dois dos nomes de proa do hip-hop cabo-verdiano. Hélio iniciou-se no rap com os ouvidos cheios de Valete ou Dead Prez em 2007, numa altura em que em Cabo Verde “estava a bater o 50 Cent e a malta queria gangsta rap”, conta ao PÚBLICO depois da sua passagem pelo palco e de distribuir dezenas de cópias do seu álbum Karta d’Alforia e aceder aos insistentes pedidos de autógrafos. Em resposta a um concurso radiofónico, gravou o seu primeiro rap sobre as condições de saúde em Cabo Verde, venceu a competição e criou as bases para uma carreira que cumpre o seu décimo aniversário, mas que se afirmou verdadeiramente com a mixtape Golpe di Stadu, em 2011. “Essa mixtape é uma aclamação a um golpe de estado mental, uma mudança de visão e de paradigma do lifestyle do cabo-verdiano, ao indagar, propor questões e soluções que fogem do paradigma dominante actual – toda a propaganda imperialista imposta pelos media.”

A escancarada postura política que o músico resume como “contestatária e de alusão à liberdade e à paz”, uma análise crítica do país e sintonizada com as lutas da população que João Rosa identifica também nos Rapaz 100 Juiz, cedo encontrou o seu público em Cabo Verde, ao implicar a música na discussão política e vice-versa. Hélio manteve essa direcção nas mixtapes seguintes, embora aos poucos tenha aberto cada vez mais as suas temáticas de eleição, falando agora de Karta d’Alforia como um álbum “sobre ser e ter, como viver assim e ser feliz, sobre tráfico de droga, criminalidade, tráfico humano, terrorismo e relações interpessoais”, dissertando sobre uma liberdade individual de escolha, tentando ser fiel ao legado do histórico independentista e pensador Amílcar Cabral de apelo a que cada um pense pela sua cabeça.

A capa de Karta d’Alforia ostenta um símbolo bem visível onde se lê “rap kriolo”. O crioulo, esclarece, o rapper, “não é apenas a sonoridade – é tudo, a sociedade, os temas, as questões”. Mas não é preciso esgravatar muito para perceber que o álbum de Hélio Batalha mostra pela primeira vez uma aproximação declarada a sonoridades mais enraizadas na cultura cabo-verdiana, com a participação do lendário “rei do funaná” Zeca di nha Reinalda, vocalista dos Bulimundo, no tema Nha vizinha. Sabendo bem da resistência da “velha guarda” perante o hip-hop, a verdade é que parece, aos poucos, começar a brotar uma identidade para o rap autóctone que não passa somente pela emulação dos modelos norte-americanos. “É uma necessidade e um objectivo meu e de outros MC trazer outra sonoridade, uma outra abordagem com samples mas também com sons crioulos, guitarra, gaita ou cavaquinho.” É a promessa para o próximo álbum. Um vislumbre de futuro que se sente também de imediato assim que Ceuzany pisa o palco LusAfro e derrama com espantosa e instantânea intensidade uma interpretação quase vulcânica, corpo e voz a agitar seriamente o presente.

Canto sem tempo

“Já não são muitos os jovens a fazer morna e coladeira”, diagnostica ao PÚBLICO Lucibela, nova e encantatória intérprete colada à música tradicional que o AME revela à hora de almoço de terça-feira – nenhuma cachupa do mundo seria competição à altura. “Mas temos de dar continuidade, não podemos deixar morrer, porque esta música é nossa. A Cesária Évora levou a música muito longe, mas com a morte dela tudo ficou um bocadinho parado.” Uma das principais dificuldades deste quadro, diz a cantora assinada por Djô da Silva, é que ao preparar a gravação do seu álbum de estreia, com produção de Toy Vieira, não são muitos os compositores mais novos a quem possa recorrer para pedir uma morna.

Só que, ao ouvir o charme natural do canto de Lucibela, é fácil perceber que há algo de irresistível nesta intemporal forma de cantar, que é tanto tradicional pelo seu modelo, quanto desligada da passagem dos dias pela forma como parece colocar o mundo em suspenso – tal como aconteceu com o fadista Duarte, logo a seguir, ao dispensar a amplificação e cantar Estranha forma de vida como o faria numa casa de fados. Entre mornas de Paulino Vieira ou um brasileiro Negue a que Cesária atribuiu passaporte cabo-verdiano, Lucibela conquista com uma música descomplicada e em estado de absoluta pureza. Ela que se descobriu cantora a vocalizar Nutridinha mostra, afinal, que mesmo sendo impossível obrigar os novos músicos a ouvir e fazer funanás ou mornas, não se esgotou a razão para o fazer quando soa tudo como se, durante aquela meia hora, o mundo pudesse ser apenas aquela música. Sem falta de algo mais.

O Público viajou a convite da Tumbao

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