Factos alternativos do Rato até S. Bento

A encenação do episódio Mourinho Félix e a notícia da indicação de Mário Centeno mostram bem que a moda dos factos alternativos não vive só em Washington.

1. O Governo tem vindo a fazer uma enorme encenação – verdadeiro epítome da sua máquina de propaganda – a propósito das inaceitáveis declarações de Dijsselbloem. Esta encenação tornou-se ostensivamente patente na última reunião do Eurogrupo, por sinal a primeira depois das malfadadas declarações. O embuste assume proporções desmedidas e beneficia de uma passividade mediática absolutamente incompreensível. Alguém tem de dizer alguma coisa, a bem da salubridade da República e da seriedade da política. Até aqui, só Marques Mendes parece ter demonstrado preocupação com o assunto.

2. O primeiro ponto a merecer atenção e censura é a ausência de Mário Centeno da reunião em que previsivelmente a questão seria abordada. Como é possível que, depois da posição forte que o Governo português quis assumir, o ministro das Finanças esteja ausente da reunião do Eurogrupo? Trata-se de uma clara posição de passividade, a roçar a cobardia, de resto, totalmente congruente com o silêncio sepulcral a que Centeno se remeteu nesta matéria. Logo depois de eu ter exigido a renúncia de Dijsselbloem, houve uma declaração condenatória do ministro dos Negócios Estrangeiros. E a seguir, uma pronúncia forte – em alguns passos, até diplomaticamente problemática – do primeiro-ministro. Mas o ministro das Finanças não se fez ouvir: há semanas que se instalou comodamente num silêncio ambíguo e cúmplice. E agora, actua em conformidade: falta à reunião em que o assunto deveria ser suscitado e discutido. Sobre a duplicidade e a ambiguidade do Governo português, com vidas paralelas em Lisboa e em Bruxelas (ou La Valletta), estamos conversados. É o Mr. Hyde em Lisboa e o Dr. Jekill na Europa.

3. O segundo ponto, verdadeiramente vergonhoso, é a encenação feita nas primícias da reunião do Eurogrupo. Antes do mais, importa lembrar que a admissão de câmaras de televisão à sala de reuniões é apenas destinada a captar imagens; nada mais. A divulgação de conversas informais tidas na antecâmara da reunião é um abuso e uma violação de regras éticas elementares e da deontologia jornalística. Já o denunciei, em idêntico contexto, aquando da célebre conversa de Gaspar com Schäuble, em que se chegou a estranhar que Gaspar estivesse de pé debruçado sobre Schäuble que (necessitando de cadeira de rodas) permanecia sentado... No caso vertente, a situação é bem mais grave, pois parece evidente ter havido um alerta prévio do Secretário de Estado à comunicação social portuguesa de que iria fazer um “número” deste género. Sou insuspeito de apoiar o socialista Dijsselbloem, mas antolha-se inqualificável montar-lhe uma “armadilha” deste calibre, organizada por um colega do Conselho. E da qual o holandês acabou por se livrar muito proficientemente. Talvez a vontade da máquina de propaganda do PS de fazer uma “armadilha” possa outrossim explicar por que razão Mário Centeno não foi à reunião: tenho a certeza de que ele não se prestaria a um papel tão triste e aviltante. Uma pergunta tem de se fazer: que credibilidade pode merecer um governante que, como Mourinho Félix, se dispõe a este tipo de atitudes? Em boa hora, e por malabarismos vários à volta da Caixa, pedi a sua demissão. Infelizmente, poucos me acompanharam. Depois disto, ela justifica-se mais do que nunca. 

4. A desfaçatez do secretário de Estado é inversamente proporcional à sua coragem. Nas imagens divulgadas, é visível o seu incómodo, atrapalhação e até uma reverência paroquial e provinciana, próprios de quem não está de consciência tranquila. Foi incapaz de falar na demissão no momento da grande encenação. Mas pior, foi incapaz de a exigir durante a reunião, que era a sede própria e adequada para o efeito. Que Governo é este que grita e vocifera em Lisboa e que sussurra e titubeia na Europa? Depois de tudo isto, há alguém que deve um pedido de desculpas aos portugueses e esse alguém não é já Dijsselbloem. É mesmo o Governo português, que usa de duplo de padrão e que se entrega a encenações tristes, política e eticamente indignas.

5. Uma palavra ainda para lamentar que uma parte substancial da comunicação social pactue, mesmo que por omissão, com um comportamento deste teor. E que, depois disso, aceite ainda ser o veículo do spinning socialista, procurando mostrar um episódio destes como uma grande “bravata” lusa. Quando na realidade ele é um exemplo de fragilidade, provincianismo e tentativa (em vários casos, conseguida) de instrumentalização da comunicação social.

6. Nada de surpreendente, como tenho tão insistentemente advertido. Basta ver a novela que anda à volta de uma putativa sondagem de Mário Centeno para presidente do Eurogrupo. Qualquer pessoa que se movimente nos meios políticos de Bruxelas sabe que não há uma única alma que, até aqui, tenha aventado essa hipótese. Entre múltiplas personalidades da Comissão, do Conselho e do Parlamento, provenientes de países os mais vários e de diferentes famílias políticas, nenhuma ouviu falar dessa possibilidade. Só em Portugal se falou nisto, por sinal num dia 1 de Abril. É peculiar que jornais como o Expresso ou, ainda ontem, o PÚBLICO assumam esta notícia com base em fontes unicamente portuguesas. Basta consultarem fontes europeias – e têm em Bruxelas e noutras capitais jornalistas com experiência e com boas redes de contactos – para perceberem que, no momento actual, essa possibilidade não passa de uma mera probabilidade estatística. Até pode ser que, depois desta ofensiva governamental junto do circuito mediático, a ideia ganhe algum eco fora de portas e possa enfim ser exportada. Mas não haja ilusões: ela tem origem na vereda que vai de S. Bento ao Largo do Rato e, para já, é essa a dimensão da sua plausibilidade.

7. A encenação do episódio Mourinho Félix e a notícia da indicação de Mário Centeno mostram bem que a moda dos factos alternativos não vive só em Washington. Ela – a moda – e eles – os factos alternativos – andam por aí.

SIM

Maria Helena Rocha Pereira. Sublime pioneira na cultura, na arte, na academia, na divulgação dos clássicos. Ninguém pode ficar indiferente à sua versão de A República de Platão: participa seguramente do mundo das ideias.   

NÃO

Viktor Orbán. De há muito que aqui se denuncia a deriva autoritária rumo à democracia iliberal no Leste e na Hungria. O ataque à liberdade académica é o derrame que faz transbordar o copo da paciência europeia.

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