Salário Mínimo Nacional. E os recibos verdes?

Uma política de garantia de salário mínimo não pode ignorar a realidade dos recibos verdes.

E se o Governo, em vez de decretar o aumento do Salário Mínimo Nacional (SMN), prometesse que seria implacável com toda e qualquer prática de trabalho que não respeitasse as leis laborais, garantindo assim que todos aqueles que trabalham teriam direito ao mesmo regime de segurança social e a um rendimento adequado, de acordo com os limites definidos pela lei, como é exemplo o SMN?

Começamos com esta pergunta, dado que o salário mínimo é um tema de grande relevância e a sua discussão não deve ser desligada da realidade do mercado de trabalho, na qual é, ou devia ser, incontornável a situação dos chamados “trabalhadores a recibos verdes”. Com esta análise pretendemos contribuir para o debate e as possibilidades de resposta para este problema.

De acordo com a lei que introduziu o Salário Mínimo Nacional em Portugal, Decreto-Lei n.º 217/74, de 27 de Maio, pretendia-se evitar que o “trabalho”, independentemente do setor de atividade e/ou situação, fosse remunerado abaixo de um certo limiar mínimo, estabelecendo exceções para o trabalho a tempo parcial, ainda que obrigando à proporcionalidade em termos de horas/remuneração.

O aumento do SMN, sendo uma medida que consideramos positiva, não garante per se uma melhoria dos rendimentos da generalidade das famílias. Primeiro, porque abrangerá diretamente e apenas a parte da população trabalhadora que aufere salários equiparados ao SMN. Segundo, tenderá a aumentar o número de trabalhadores com salários na base da distribuição em vez de incentivar o aumento dos restantes. Com o aumento para os 557 euros em 2017, e segundo alguns dados que têm vindo a público, o SMN pode ter passado a abranger 20% da população.

A confirmar-se esta tendência, significa que os salários ligeiramente acima do SMN não terão sido aumentados na mesma proporção. Isto é elucidativo das limitações desta medida na promoção da justiça social, especialmente não sendo enquadrada numa verdadeira política de rendimentos abrangente, que inclua necessariamente medidas de emprego, reforço do cumprimento da legislação laboral, maior justiça fiscal e equidade dos benefícios sociais. Terceiro, e porventura mais evidente, o aumento do SMN deixa de fora todos os trabalhadores que são hoje (e cada vez mais, sobretudo entre as gerações mais novas) obrigados a trabalhar a recibos verdes, porque lhes é recusado um contrato de trabalho — o que de acordo com a lei, em boa parte das situações, constitui uma ilegalidade.

O cerne do problema reside, porventura, na teia de contradições que permite que o trabalho a recibos verdes se tenha tornado comum. A primeira contradição é que este ocorre sobretudo na Administração Pública, instituições sociais e meios de comunicação social.

A segunda é que esta realidade, mesmo podendo ser ilegal, está cada vez mais regulada em matéria de legislação fiscal e de segurança social: basta lembrar que já existe uma taxa contributiva para a entidade que beneficia da prestação de serviços dos trabalhadores supostamente independentes, legitimando assim uma prática que pode ser ilegal. Por fim, a terceira contradição tem que ver com o estranho desinteresse político por este problema. Como é que se pode defender o aumento o SMN ignorando a discussão sobre a realidade dos direitos laborais e sociais dos trabalhadores a recibos verdes?

No IPP Policy Brief 9 (disponível em ipp-jcs.org) procurámos analisar a situação dos trabalhadores a recibos verdes, quer sejam realmente independentes (profissionais liberais ou freelancers), ou antes pessoas que trabalham dentro de uma empresa ou instituição, com um horário de trabalho e pagamento mensal, por vezes utilizando a conta de e-mail oficial, configurando uma relação laboral típica de um contrato de trabalho.

Da comparação das regras de IRS e Segurança Social aplicáveis aos trabalhadores com o SMN, e trabalhadores com o mesmo rendimento, mas a recibos verdes, há três resultados que merecem ser discutidos publicamente:

  1. Aplicando as regras referentes às contribuições para a segurança social e retenção na fonte para um trabalhador que no ano anterior tenha auferido pelo menos 10.000 euros, verifica-se que o salário mensal líquido de quem recebe até 835 euros/mês (1020 euros/ano) a recibos verdes é menor do que o SMN (502 contra 595 euros do SMN).
  2. Quanto ao salário anual líquido, corrigindo o efeito penalizador da retenção na fonte excessiva, pela taxa efetiva de IRS (estimada sem deduções), que, note-se, não é possível com a lei atual que obriga à retenção de 25%, o trabalhador a recibos verdes receberia mais que o SMN (8036 face a 7498), mas com uma pensão de referência menor (419 face aos 557 euros do SMN).
  3. Se um trabalhador com o SMN passar a recibo verde, para manter o mesmo rendimento (salário e pensão), ainda que sem direito a subsídio de desemprego, terá de auferir no mínimo 861,27 euros/mês, durante 12 meses (SMN anual líquido de 7498 = recibo verde de 10.335), e isto na condição de serem seguidas as recomendações que se apresentam de seguida.

E se as contribuições dos trabalhadores a recibos verdes fossem definidas com base no SMN?

Conforme os resultados apresentados, fica evidente a necessidade de se proceder a uma reforma urgente da legislação aplicável aos trabalhadores a recibos verdes. Tais medidas seriam fiscalmente neutras, pois não implicam aumento de despesa nem perda de receita:

i) Finanças e Segurança Social deveriam usar o mesmo coeficiente para calcular rendimento de referência. Em vez dos atuais 75% para tributação e 70% de contribuições para segurança social, a regra seria a mesma, 70% ou 75% para ambos.

ii) Consequentemente, no IRS, só haveria retenção na fonte quando fosse ultrapassado o limite dos 10.000 euros de rendimento de referência, ou 13.333 euros (valor dos recibos), até porque para montantes inferiores, por estarem abaixo do valor ano do SMN, não deverá haver pagamento de imposto. A lei atual, depois da alteração de 2014, obriga a uma taxa de retenção de 25% após os 10.000 euros, o que leva a uma desproporcionalidade absurda face ao imposto real que rondará os 6-7%.

iii) Por fim, as contribuições para a segurança social dos recibos verdes deveriam ser baseadas no rendimento de referência calculado em 1., e em vez do IAS os escalões de rendimento deveriam estar alinhados com o SMN anual, considerando 14 meses, para assim permitirem uma pensão igual à que terá um trabalhador com o SMN.

Se, porventura, se vier a verificar que os rendimentos dos trabalhadores a recibos verdes não lhes permitem cumprir com a contribuição para a segurança social, tal reforça a justeza do ponto de partida: uma política de garantia de salário mínimo não pode ignorar a realidade dos recibos verdes. O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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