No Café Memória tenta-se esquecer o Alzheimer durante uma manhã

Projecto para pessoas com demência e familiares comemora quatro anos. O PÚBLICO foi conhecer três voluntários deste espaço e acompanhou uma das sessões.

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Isabel Seatra Camelo é um dos 381 voluntários do projecto Rui Gaudêncio
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Maria José Alvarez, 73 anos, gostava de ter tido o apoio do café quando a mãe ficou doente Nuno Ferreira Santos
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O contacto de Ana Moita com a doença é mais antigo e já soma oito anos Rui Gaudêncio

Elisabete da Conceição entra sorridente. Traz Victor pela mão, puxando-o suavemente, sempre que as pernas teimam em deixar de saber como andar. Ele já não sabe, mas estão casados há 50 anos. Houve festa em Alenquer. Tal como no dia do casamento. Victor já não se recorda de nenhum dos momentos. Tem 78 anos e há oito cruzou-se com um diagnóstico que, pouco a pouco, lhe levou a memória: Alzheimer. Mas a doença não lhe levou Elisabete, agora com 73 anos. “Esteve 23 dias num lar e fui lá buscá-lo. Ele faz-me muita falta”, assegura, ao mesmo tempo que acaricia o rosto do marido.

Neste sábado, vieram ao Café Memória, um espaço mensal destinado aos familiares e às pessoas com Alzheimer ou com outro tipo de demência. Aqui trocam-se experiências e fazem-se exercícios que ajudam a lidar com a doença. Mas, sobretudo, durante um par de horas esquece-se a partida que a vida pregou.

O Café Memória celebra quatro anos neste mês de Abril. No total, funciona em 13 locais em todo o país, três dos quais em Lisboa. Ocupa desde espaços de restauração em centros comerciais, até museus ou locais cedidos por instituições de ensino. O projecto, apoiado pela Associação Alzheimer Portugal e pela Sonae Sierra (do grupo Sonae, a que pertence o PÚBLICO), inspira-se num projecto internacional com o mesmo nome. Elisabete e Victor participam quase desde o início. Desta vez vieram ao Café Memória do Centro Comercial Colombo, por ser o aniversário. Mas regra geral vão ao de Cascais. Mesmo assim, são várias as caras conhecidas. Quase todas de voluntárias e cuidadores. “Muitos dos doentes já não conseguem vir. O Victor ainda anda, por isso ainda é como pão com mel. É bom enquanto o puder trazer”, justifica Elisabete.

A sessão começa com um momento quebra-gelo, antes da participação especial do psicólogo Américo Baptista, que fará uma apresentação sobre a felicidade na terceira idade e estratégias para ver o lado bom da vida, mesmo quando se envelhece, com especial destaque para as actividades que mantêm o corpo e a mente activos. Há vários papelinhos cortados em tiras, com frases sobre o que pode significar a felicidade. A voluntária Isabel Seatra Camelo ajuda na distribuição e as possibilidades oferecidas pela advogada de 29 anos são múltiplas. De comer uma bola de Berlim a ganhar a lotaria. Ou aquecer um pijama no Inverno. Também ela tem uma ligação à doença, com uma avó que já não a reconhece. Foi na procura de soluções para a avó que encontrou o site do projecto e pediu para fazer a formação necessária para começar como voluntária.

Elisabete não hesita nos papelinhos. “Só posso tirar este… Para mim, felicidade é apaixonar-me todos os dias”, diz, enquanto ajeita a camisola do marido. Esta sessão conta com uma palestra, mas o mais comum é fazerem actividades que criam boa disposição, que dão dicas aos cuidadores ou que estimulam os doentes. Com uma vantagem: aqui todos estão familiarizados com a doença e não se censuram comportamentos. Aqui ninguém parece reparar que Victor consegue passar longos minutos preso a uma mesma zona de uma revista, ao mesmo tempo que tenta apanhar com a mão as imagens impressas. Também ninguém estranha que comece a comer um bolo utilizando um garfo, mas que a meio tenha perdido a noção de como se utiliza aquele talher.

Não há números certos, mas as estimativas apontam para que existam 182 mil pessoas com demência em Portugal, sendo 70% dos casos de Alzheimer. Estas doenças não têm cura, nem se compreende totalmente os mecanismos que levam a esta degradação. Elisabete é optimista e acha que, apesar de tudo, tem tido sorte. Na mesma mesa estão pessoas mais novas com maridos que já estão presos a uma cama. E todos sabem os nomes e as histórias de quem ali está, até porque entre um café e outro combinam-se outros programas e há entreajuda.

Isabel Seatra Camelo

“Há um ano que a minha avó não sabe quem sou”

Foi a pensar no grande número de doentes e nas poucas respostas que nasceu o Café Memória. Desde Abril de 2013 já foram feitas 328 sessões, em que participaram 6000 pessoas. Ao todo, o projecto formou 381 voluntários, que dedicaram dez mil horas a estes encontros. Isabel Seatra Camelo é uma delas. Natural do Alentejo, foi lá que se habituou desde sempre a fazer voluntariado. Agora, com a actividade profissional, sobra menos tempo. O Café Memória, pelas respostas que lhe dá na relação com a avó com Alzheimer e pelo horário, “pareceu ser a combinação perfeita”. “Há um ano que a minha avó não sabe quem sou, mas aprendemos a ter outra relação”, assegura.

“No Café Memória somos uma tertúlia e não pretendemos ser médicos, mas temos formação para saber o que dizer. Por exemplo, aprendi que é importante ir tocando na pessoa com carinho quando falamos com ela. Ou mostrar o que estamos a oferecer, quando perguntamos se quer um chá ou um sumo.” A voluntária assegura que o “ambiente do café é leve”, mas reconhece que custa sempre quando lidam com familiares mais revoltados ou quando percebem que um doente já não consegue comparecer.

Maria José Alvarez

“Insistíamos demasiado para ela se lembrar das coisas”

Mas o caso de Isabel não é único. O PÚBLICO conheceu mais dois rostos de voluntárias do projecto, que acabam por se tornar familiares, até para os doentes. Quase sempre há uma relação entre os voluntários e a doença, o que os aproxima ainda mais de quem ali está — ainda que sempre apoiados por técnicos especializados. Maria José Alvarez, de 73 anos, gostava de ter tido o apoio do café quando a mãe ficou doente e por ser familiar da mentora do projecto, Catarina Alvarez, decidiu entrar como voluntária.

No café aprendeu exercícios como recordar canções da juventude ou fazer jogos com números que nunca se lembrou que poderiam ter sido úteis para a mãe. “Acho que insistíamos demasiado para ela se lembrar das coisas e só nos ocorria desmanchar bainhas para ela fazer de novo, pois tinha sido modista.” Maria José tenta não pensar demasiado no assunto, mas reconhece que tem medo de ter a mesma doença. “Aproveito e faço também para mim os exercícios.”

Ana Moita

“Só se sabe o que se está a perder quando está perdido”

A tranquilidade com que Ana Moita fala contrasta com a vida profissional agitada e com o difícil diagnóstico de Alzheimer do seu pai. Tem 47 anos e sempre encontrou espaço para voluntariado na preenchida agenda de responsável de marketing para a coordenação da Europa e de novos mercados da Sonae Sierra. Teve conhecimento do Café Memória pela empresa onde trabalha. O contacto com a doença é mais antigo e já soma oito anos. Ainda antes de se cruzar com o diagnóstico, sabia que se passava qualquer coisa. O pai começou a ficar mais ríspido e a questionar tarefas que sempre delegou nos filhos. Depois, começou a confundir rotinas e a arranjar-se para ir trabalhar quando já estava reformado.

É esta experiência, que aprendeu a viver com serenidade, que Ana Moita traz para o Café Memória. Descreve-o como “um espaço de encontro, partilha, formação e suporte”. Sabe bem que quem ali vem “não sabe como será o minuto seguinte, a hora seguinte”. Até porque, olhando para o caso do pai, “só se sabe o que se está a perder quando está perdido”.

Ana sabe que todas as doenças têm as suas particularidades, mas sente que nesta faz a diferença ser uma voluntária que sabe exactamente o que os familiares estão a passar e está a par de todos os casos. Acredita que a fase mais violenta é quando os doentes ainda têm consciência de que não estão bem, “quando há espaços de vazio de que não se lembram mas que percebem que existiram para as outras pessoas”.

Por isso, o que tenta transmitir é que vale a pena recriar a relação com o doente e aprender a ser “uma presença agradável que os faça sentir bem” e investir na qualidade de vida. Não importa se deixam de saber quem é quem. O pai nunca lhe troca o nome. É sempre a Ana ou a Anita de antigamente, mas não significa que a reconheça como filha. E quando reconhece, é a “Ana com 11 anos e com canudinhos loirinhos”. “Não é o papá de sempre, mas é o meu pai e quero continuar a tê-lo comigo.”

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