Os bufos de Erdogan vêm da própria sociedade civil

Pais que denunciam filhos. Maridos que acusam as mulheres. Colegas que traem colegas. A 16 de Abril, os turcos votam em referendo a revisão da Constituição, que pode trazer ainda mais poder ao Presidente, Recep Erdogan.

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Num sábado, enquanto consultava o Facebook em casa, Bilgin Ciftci viu uma publicação que o fez rir. Era uma montagem de imagens do Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, ao lado de Gollum, personagem da saga Senhor dos Anéis. Na primeira imagem, o Presidente e o habitante enrugado da Terra Média criado por J.R.R. Tolkien tinham o mesmo olhar de espanto. A segunda mostrava as duas figuras de olhos arregalados de admiração. Na terceira, Erdogan roía uma coxa de frango ao mesmo tempo que Gollum dava uma dentada num peixe.

Ciftci, um médico da cidade de Aydin, no Oeste da Turquia, carregou no botão de partilha e não pensou mais no assunto. Porém, algumas semanas depois, foi convocado para ir à polícia e acusado de insultar o Presidente – o que é crime na Turquia. Perdeu o emprego num hospital público e ficou preso a um processo legal que já se arrasta há mais de 18 meses. A certa altura, o juiz chegou mesmo a nomear um painel de peritos em Tolkien para o aconselhar sobre se Gollum devia ser considerado bom ou mau (estes decidiram que, no fundo, ele tem bom coração).

No meio deste absurdo, a história tem outra camada mais negra. Quando partilhou o meme, Ciftci, de 48 anos, pensava que só o estava a mostrar aos membros da sua rede privada no Facebook. No entanto, a polícia tinha uma captura de ecrã da sua página. Não lhe tinham pirateado a conta, nem espiado o computador. A verdade era muito mais perturbadora: ele tinha sido traído por alguém que conhecia. Ciftci deduziu que o culpado seria o marido de uma familiar. Quando lhe telefonou para o confrontar, o parente começou por negar e depois desligou o telefone.

O tormento de Ciftci reflecte uma situação mais importante que está a acontecer na Turquia, algo que poderia ter saído das páginas de um romance distópico. Praticamente todas as semanas surgem histórias sobre amigos, colegas e até cônjuges que se denunciam uns aos outros por uma série de infracções. “Isto tornou-se um fenómeno na nossa sociedade”, afirma Ciftci, sentado num café perto do tribunal de Aydin, uma instituição que se tornou mais familiar do que ele alguma vez podia ter imaginado. “Há pessoas que são mais papistas que o Papa. Tornam-se cidadãos informadores.”

Caros cidadãos informadores

Todos os serviços policiais e de espionagem utilizam com regularidade infiltrados e informadores na luta contra o crime organizado e o terrorismo. A Turquia – um país que, no ano passado, sofreu 267 ataques terroristas diferentes e também uma violenta tentativa de golpe de Estado que provocou mais de 200 mortos – enfrenta várias ameaças genuínas e profundamente graves. Mas há inúmeras histórias de cidadãos normais, não remunerados, que decidiram transformar-se num exército de informadores voluntários.

Há muitos precedentes históricos para este tipo de traição, desde estrelas de Hollywood a denunciar-se mutuamente no auge da caça às bruxas do mccarthismo à vasta rede de informadores que ajudava a Stasi na República Democrática Alemã. A Turquia também tem um histórico considerável. O paranóico sultão Abdul Hamid II tentou manter a união de um Império Otomano desgastado recorrendo a um exército de espiões oficiais e não oficiais.

Um relatório consular americano do início da década de 1940 relata que os turcos que rejeitavam o Governo costumavam descobrir que a polícia sabia das suas “infracções menores”, por vezes com a ajuda de informadores secretos “que parecem existir em abundância neste local”. Depois de um golpe de Estado em 1971, os generais no poder gostavam de usar o termo “caros cidadãos informadores” para se dirigirem à nação, o que mais tarde deu origem a uma peça de teatro com o mesmo nome.

Na Turquia de hoje, em que os partidos da oposição estão enfraquecidos e todos os principais meios de comunicação foram forçados à submissão, domínios como a casa de chá, a sala de aulas ou o feed de notícias do Facebook são mais difíceis de controlar. Há vários anos que o Governo costuma incentivar os responsáveis eleitos dos bairros a manter registos sobre as pessoas da sua zona. Estes apelos também se estendem cada vez mais aos cidadãos comuns.

A motivação vem do topo. “Se conhece alguém, em qualquer lugar, informe os nossos serviços de segurança imediatamente”, apelou o Presidente Erdogan em Dezembro, ao falar sobre uma vaga de atentados terroristas fatais. “Isto não é competência só dos nossos serviços de segurança.”

Impelidos por este tipo de incentivo e ajudados por um sistema judicial ineficiente, actualmente os apoiantes leais patrulham as esferas pública e privada. Alguns até se gabam dos seus feitos nas redes sociais.

“Na Turquia, costumava ser considerado uma vergonha fornecer informações à agência de espionagem ou à polícia”, conta Melda Onur, uma deputada da oposição que recentemente partilhou a história de um taxista que denunciou um passageiro por criticar o Governo. “Um informador – se fosse conhecido – não sobrevivia facilmente na nossa sociedade”, acrescenta. “Este Governo acabou com essa ideia.”

As histórias sobre quem denuncia e quem é alvo de denúncias revelam o lado negro de um país devastado pelo medo e pela intolerância – e servem de aviso às sociedades ocidentais que se debatem com as suas próprias clivagens políticas e sociais.

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Manifestantes mostram os rostos dos 200 mortos durante o golde de Estado falhado de Abril de 2016 Chris McGrath/Getty Images

Entre marido e mulher, está... Erdogan

Ali Dinc estava casado pela segunda vez há pouco mais de dois anos, mas o casamento não corria bem. Num café banal num centro comercial nos arredores de Izmir, na costa do mar Egeu, ele explica que trabalhava muito como camionista e que, quando regressava a casa, encontrava uma vida familiar cada vez mais irritante.

Dinc, de 40 anos, cuja barriga esférica até é um complemento à sua careca redonda, diz que ele e a mulher começaram a entrar em conflito por causa da política. Ele alega que ela insultou o Presidente Erdogan enquanto fazia zapping na televisão. Ele adorava o Presidente e considerava que não ficava bem a uma mulher dizer palavrões. “Chegava a casa do trabalho cansado, sentava-me, jantava e só ouvia asneiras”, conta. “Já não aguentava mais.”

Uma noite, Dinc perdeu as estribeiras e ameaçou gravar a mulher. Dinc garante que a mulher até o encorajou a fazê-lo. E ele gravou o que descreve como “21 segundos de palavrões”, enquanto ela gritava com Erdogan. Logo de seguida, entregou a gravação a um advogado local. Foi aberto um processo contra a mulher. Sem surpresas, ela pediu o divórcio e o caso tornou-se famoso na Turquia.

Dinc nega ter sido motivado pela raiva e pela vingança. “É porque adoro o Presidente”, insiste. “Não se pode insultar alguém que fez tanto pela Turquia. Ele é o chefe de Estado. É uma excelente pessoa. Gosto muito dele.” Dinc afirma que, mesmo que fosse casado há 20 anos, teria feito o mesmo. É evidente que aprecia a ideia de a mulher ter sido posta no lugar. Quando lhe perguntamos como é que ela está, Dinc responde friamente: “Agora está bem. Mas, quando começar o julgamento, vai perceber o erro que cometeu.” Não parece considerar remotamente sinistra a ideia de a ex-mulher ser condenada a uma pena de prisão por uma coisa que disse na privacidade do lar. A liberdade de expressão, garante Dinc, não é mais restrita na Turquia do que noutros países europeus. Eu conto-lhe, detalhadamente, sobre a famosa alegação que consta da biografia não autorizada de David Cameron, em que é relatado o episódio de um ritual iniciático durante o percurso universitário do ex-primeiro-ministro britânico que envolve uma parte privada da sua anatomia e a cabeça de um porco morto – e explico que os autores do livro onde a alegação foi feita não enfrentaram nenhuma consequência legal. Depois de um silêncio espantado, Dinc diz apenas: “Tenho de mudar de assunto. Meu Deus.”

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Erdogan, primeiro como primeiro-ministro e depois como Presidente, ganhou forças com uma série de vitórias eleitorais cada vez maiores Kayhan Ozer/Anadolu Agency/Getty Images

Um líder machista e paternalista

Apesar de ele insistir no contrário, é difícil acreditar que os actos de Dinc não foram, pelo menos em parte, causados pela raiva nascida de um casamento em crise. Mas ele também demonstra a devoção quase religiosa ao Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) de Erdogan que é habitual entre os seus apoiantes, que constituem cerca de 50% do eleitorado. Dinc fala, comovido, sobre as dificuldades que teve em pagar o tratamento hospitalar quando o filho era bebé – um problema que diz ter sido resolvido pelas reformas do partido. Em Julho, quando viu pela primeira vez a novíssima Ponte Osman Gazi, que iria poupar várias horas no tempo de viagem para Istambul, Dinc chorou de alegria.

Desde que o AKP chegou ao poder em 2002, há um antagonismo entre os apoiantes do partido e os que se opõem veementemente a ele – sejam estes secularistas extremos, liberais, activistas dos direitos dos homossexuais ou pessoas que apoiam uma maior autonomia da maioria curda do Sudeste. Mas as divisões aumentaram à medida que a posição do AKP foi ameaçada, inclusive por um exército mais assertivo. Ao mesmo tempo, Erdogan, primeiro como primeiro-ministro e depois como Presidente, ganhou forças com uma série de vitórias eleitorais cada vez maiores.

A antropóloga Jenny White assinalou a obsessão da cultura política turca com os “traidores” que querem destruir a nação, os “heróis altruístas” prontos para os vencer e o “grande” líder, machista e paternalista, que os irá guiar nesta luta. Estes conceitos alimentam-se de medos profundamente enraizados de que há inimigos internos e externos decididos a destruir o país. Quanto mais tempo Erdogan se mantiver no poder, defende White, mais ele recorrerá a estes clichés, desenvolvendo “um culto de personalidade extremo, em que é apresentado como o salvador heróico do seu povo”. Entretanto, os seus críticos são “enxovalhados” e tornam-se “bodes expiatórios cultivados e atacados como traidores”.

Este tipo de retórica fracturante não é unívoco. Não é invulgar ouvir secularistas extremos a manifestar desprezo por mulheres que usam véu e a caracterizar os eleitores do AKP como idiotas incultos e ignorantes. Mas é o AKP que tem à sua disposição os recursos do Governo. E, à medida que as divisões se aprofundavam, começaram a intensificar-se os apelos a que os cidadãos se denunciassem uns aos outros.

Depois dos protestos contra o Governo no Parque Gezi, em 2013, quando milhões de pessoas saíram à rua em toda a Turquia, Erdogan incentivou o seu “povo” a “ver claramente que os jovens foram usados por traidores internos e externos”. Encorajou os cidadãos a denunciar vizinhos que tinham batido com tachos e panelas para apoiar os manifestantes. Enquanto lutava contra acusações de corrupção e vagas mais alargadas de agitação doméstica ao longo dos meses seguintes, ele classificou os manifestantes como “terroristas”, chamou aos jornalistas estrangeiros “espiões” e acusou as mulheres que usavam contraceptivos de cometerem “traição”.

A partir do Verão de 2015, no seguimento do colapso do cessar-fogo com o partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), Erdogan voltou a pegar no tema das denúncias, incentivando os responsáveis eleitos a descobrir quem eram os terroristas na sua zona e a denunciar essas pessoas aos serviços de segurança. O Presidente insurgiu-se contra um grupo de académicos que criticaram a abordagem das operações anti-PKK e declarou: “Não há nenhuma diferença entre um terrorista com uma arma e uma bomba na mão e quem usa o trabalho e a caneta para apoiar o terrorismo. O facto de um indivíduo ser deputado, académico, escritor, jornalista ou director de uma ONG não altera o facto de essa pessoa ser um terrorista.”

Começaram a aumentar as queixas de todos os sectores da sociedade. Em Kayseri, um homem foi levado para a esquadra depois de um desconhecido se ter queixado de que ele tinha insultado o Presidente durante uma conversa num banco de jardim. Na província de Sanliurfa, três professores foram denunciados a uma linha directa da administração pública por falarem curdo e, alegadamente, elogiarem uma organização terrorista.

Os académicos, em particular, expressam a sua preocupação com um clima cada vez mais sufocante nas salas de aula, depois de uma série de casos em que os alunos denunciaram os seus professores às autoridades da universidade – e até os gravaram de maneira clandestina. O impacto na liberdade académica é devastador. “Sinto-me menos seguro nas aulas”, diz um eminente professor de Ancara. “Digo aos meus alunos para não gravarem as minhas aulas. Mas, na verdade, como é que posso controlar o que eles fazem com os telemóveis? Temos de ter muito cuidado.”

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Jovem casal acaba de celebrar o seu matrimónio com vista para o Bósforo Chris McGrath/Getty Images

A traição está entre nós

O apelo às denúncias tornou-se mais urgente depois de 15 de Julho de 2016, quando elementos rebeldes do exército comandaram tanques e caças de modo a lançar um golpe de Estado violento, mas que acabou por falhar. Erdogan culpou o movimento Gülen, uma rede islâmica poderosa controlada pelo imã Fethullah Gülen (actualmente auto-exilado nos Estados Unidos), que tinha sido um aliado político próximo até a relação ter implodido em 2013. Erdogan descreveu os gülenistas como um cancro maligno que tem de ser expurgado do corpo do Estado turco. Os cidadãos, insistiu Erdogan repetidamente, têm de ajudar a entregá-los. “Talvez tenham amigos dessa comunidade”, afirmou em Outubro. “Eu digo: denunciem-nos. Têm de informar os nossos procuradores. Isto é o dever de um patriota.”

Milhares de pessoas responderam ao apelo. As recompensas financeiras atingiram valores recorde (oferece-se até 900 mil libras/1,04 milhões de euros pela captura das figuras mais procuradas no país). De acordo com a Organização Nacional de Espionagem (MIT), o número de pessoas que entraram em contacto através da Internet para oferecer assistência quase duplicou, de 34 mil em 2015 para 65 mil em 2016. As páginas dos jornais encheram-se de histórias extraordinárias de traição entre amigos, vizinhos e até no seio familiar.

Um pai de Kayseri terá informado a polícia de que dois dos filhos pertenciam à organização Gülen, porque acreditava que andavam a fazer lavagem de dinheiro para o grupo. O jornal Karar relatou o caso de uma família que não ficou convencida com a insistência do filho de que tinha abandonado o movimento. Avisaram a polícia de que ele estava prestes a fugir para os Estados Unidos e ele foi detido no aeroporto.

A polícia não teve mãos a medir. Uma reportagem publicada no jornal Habertürk em Outubro afirmou que os responsáveis estavam sobrecarregados pelo número de chamadas para a linha directa. Muitas das alegações não tinham fundamento e baseavam-se em problemas pessoais, revelou o artigo, mas, sobretudo, eram uma perda de tempo para a polícia.

Quando o próprio sistema legal é arma do Governo

A presidência turca e o Ministério da Administração Interna não responderam a perguntas para este artigo. Mas, a um nível mais geral, os membros do Governo ficam furiosos com as críticas à resposta governamental aos tumultos crescentes no país. Questionam como responderia um líder britânico se oficiais do exército rebeldes conduzissem um tanque pela ponte de Westminster ou bombardeassem o Parlamento. “Se o golpe tivesse vingado, sei que não estaria a falar consigo hoje porque não estaria vivo”, diz Ravza Kavakci Kan, um deputado do AKP. “Estamos a falar de uma situação na Turquia que seria pior do que na Síria. Qualquer país desenvolvido, ao ser confrontado com uma situação destas – um atentado terrorista ou uma tentativa de golpe de Estado –, teria a expectativa de os cidadãos denunciarem comportamentos suspeitos.”

Mas a acusação de ser gülenista, em particular, pode ser pouco transparente. Apesar de o líder espiritual do grupo, o imã Gülen, negar que esteve por detrás da tentativa de golpe, diplomatas e analistas estrangeiros consideram credível a hipótese de os seus seguidores terem tido, pelo menos, algum papel nele. Contudo, as autoridades estão a perseguir não só quem está acusado de um envolvimento directo, mas também pessoas com ligações mais subtis ao movimento. A sua natureza secreta torna difícil provar ou refutar as acusações de filiação – e torna isto um insulto fácil ao carácter de alguém.

O Governo alertou os cidadãos para não fazerem acusações sem fundamento. Banli Yildirim, o primeiro-ministro, afirmou que ia pedir aos serviços de segurança que não prestassem atenção a denúncias anónimas, depois de “injustiças” causadas por pessoas que queriam “ajustar contas” ou que “cobiçavam o emprego de alguém”. Mas as chamadas para fazer denúncias continuam. Depois de um bombardeamento no exterior de um estádio de futebol por um grupo militante curdo, que causou 44 mortos em Dezembro, o directório-geral de segurança lançou uma campanha incentivando os cidadãos a denunciar utilizadores das redes sociais que “apoiam o terrorismo, espalham propaganda terrorista ou são simpatizantes do terrorismo”.

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Erdogan culpou o movimento Gülen, que tem como líder espiritual o imã Fethullah Gülen (na fotografia, e actualmente auto-exilado nos Estados Unidos) pelo golpe falhado de Abril de 2016 reuters

Os críticos do Governo avisam que os perigos das queixas falsas ou ilegítimas são agravados pelo estado do sistema judicial da Turquia. Os procuradores e juízes têm muito medo de arquivar casos, temendo que eles próprios sejam classificados como terroristas. Muitos dos seus colegas críticos ou independentes já foram afastados e substituídos por apoiantes leais.

Um relatório recente do comissário para os Direitos Humanos do Conselho Europeu alertou para o facto de, desde 2014, o sistema legal ter sido transformado numa arma do Governo. Kerem Altiparmak, um perito em Direito Humanitário da Universidade de Ancara, afirma que esta táctica não tem precedentes. “Na década de 1980, o Estado utilizava armas mais claras como desaparecimentos ou tortura”, conta. “Agora, o Estado utiliza ferramentas 'legais'… Em vez de controlar os abusos da lei, o sistema judicial tornou-se o centro destes abusos.” O estado de emergência, que foi declarado depois da tentativa de golpe de Estado e que até agora já foi prolongado duas vezes, deu ao Presidente poderes para promulgar decretos executivos que passam por cima do Parlamento.

O Governo turco rejeita furiosamente a ideia de que o seu sistema judicial não é justo, descrevendo as alegações do Conselho Europeu como “inaceitáveis”. Também não aceita as acusações de um ambiente cada vez mais intolerante. “Todos os casos são diferentes”, diz Kan, o deputado do AKP. “Mas defender que não há liberdade de expressão e que as pessoas não podem ser críticas é completamente errado… Se fosse verdade, a parte da sociedade que está contra o Presidente Erdogan – que é uma percentagem elevada da sociedade – estaria toda em tribunal.”

Porém, os críticos contra-argumentam que a combinação de um sistema legal comprometido com uma rede de pessoas prontas e dispostas a policiar os restantes cidadãos cria uma eficácia devastadora. Num país com tribunais fortes e independentes, uma alegação falsa pode ser avaliada e depois rejeitada. Sem estes pesos e contrapesos, tem o potencial de destruir uma vida.

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Chris McGrath/Getty Images

Não se incomodem, já estou sob investigação

Apesar de se descrever como anarquista, Volkan Sevinc trabalhou sem problemas, durante vários anos, no Museu Histórico de Ancara, que é estatal e um tesouro de esqueletos de dinossauro e fósseis gigantes. “Tinha relativamente poucos visitantes”, conta Sevinc. “Mas era o único local onde as crianças podiam aprender sobre história natural e a evolução.”

Apesar de adorar o seu emprego como curador de fósseis, Sevinc afirma que as suas opiniões, enquanto ateu e veterano de manifestações a favor dos direitos LGBT, entravam em conflito com as dos colegas “reaccionários” do museu. Sevinc, de 31 anos, cuja cara tem o aspecto desgastado de quem já inalou demasiado fumo de cigarro e gás lacrimogéneo, diz que era o único homem da equipa que não ia à mesquita para as orações de sexta-feira. Não consegue evitar sorrir ao contar como um colega uma vez lhe perguntou porque é que o expositor sobre a evolução humana não estava mais de acordo com os ensinamentos do islão. Posteriormente, o museu retirou toda esta exposição.

Esta fricção ideológica parece ter irritado, em particular, uma das suas colegas – uma mulher cuja página de Facebook inclui com orgulho uma imagem sua a falar com o Presidente. No ano passado, ela resolveu recolher informações sobre as actividades de Sevinc fora do trabalho – incluindo uma condenação, em 2010, por insultar um polícia e por “alienar o público do serviço militar”, depois de ele se ter manifestado para apoiar um objector de consciência. “Como é que alguém assim pode trabalhar aqui?”, escreveu ela no Facebook. Ela também enviou as suas descobertas a um sistema de denúncias online dirigido pelo gabinete do primeiro-ministro. Em Fevereiro de 2016, Sevinc foi suspenso enquanto os responsáveis governamentais procediam a uma investigação. Em Maio, voltou a ser admitido.

Apenas dois meses depois, os golpistas atacaram e as instituições públicas lançaram inquéritos alargados para erradicar alegados militantes do movimento Gülen. Sevinc disse aos patrões, na brincadeira, para não se incomodarem com ele porque já andava a ser investigado. Mas, em Agosto, foi novamente suspenso. No mês seguinte, foi despedido – um dos quase cem mil funcionários públicos que perderam o emprego ao abrigo de decretos presidenciais promulgados durante o estado de emergência.

Todas as pessoas que foram despedidas eram descritas, genericamente, como tendo ligações a organizações terroristas ou a outras entidades que ameaçavam a segurança nacional, mas Sevinc não sabe os pormenores daquilo de que foi acusado. Nunca lhe foi dada a oportunidade de se defender. O ministro da Energia, que supervisiona o museu, não respondeu a perguntas. É difícil para quem foi despedido nas purgas encontrar trabalho, mesmo um dos mais mal pagos. Por agora, um amigo está a ajudar Sevinc a treinar-se para empregado em lojas especializadas em café, mas ainda não arranjou emprego.

Ele não tem dúvidas em relação à colega que foi responsável pela situação difícil em que se encontra. “O problema não é esta mulher”, diz. “Podia ter sido qualquer pessoa.” O que mais o transtorna é o facto de a queixa dela ter sido levada a sério. “A questão é que isto é completamente injusto. Mesmo que estivéssemos a falar sobre um membro destas organizações [terroristas], não há um processo legal. Com certeza, se eu fizer um mau trabalho, se não me esforçar o suficiente, abram uma investigação. Mas estão a despedir-me com base nas minhas ideias. O meu crime, no fim de contas, foi não ser como eles.”

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Cartazes de campanha pelo Sim ao referendo do próximo dia 16, que tem como objectivo alterar a Constituição e garantir mais poder a Erdogan Chris McGrath/Getty Images

Um cidadão preocupado

Alguns dos casos que surgiram nos últimos meses seriam engraçados se não fossem tão graves. Em Dezembro, os meios de comunicação turcos relataram a história de um funcionário do tribunal que acusou a namorada de pertencer à organização Gülen, depois de ela ter rejeitado o pedido de casamento dele. Um colunista de um jornal local em Elazig fez uma paródia do clima político nacional usando uma conversa imaginária entre um cidadão preocupado e uma linha directa do Governo. “Caro cidadão preocupado, isto é uma gravação”, lia-se. “Escolha 1 para denunciar um vizinho, escolha 2 para denunciar um amigo, escolha 3 para denunciar um habitante da terra.”

Mas o que está em jogo para Erdogan – e para a Turquia – não podia ser mais crucial, à medida que o país participa numa campanha eleitoral. No próximo dia 16 de Abril, os eleitores vão a votos num referendo nacional sobre os planos para uma revisão radical do sistema de Governo. As propostas iriam abolir o papel de primeiro-ministro (que Erdogan desempenhou durante 11 anos) e transformar formalmente o papel cerimonial da presidência num papel executivo. Neste novo sistema, Erdogan poderia governar até 2029.

Temendo que o resultado seja renhido, o Presidente regressou ao discurso sobre traidores e heróis. “A posição do 'não' está do lado do 15 de Julho”, afirmou em Fevereiro, relacionando directamente quem se opõe às mudanças aos golpistas e também ao PKK.

Votar “não” não é crime na Turquia. Mas isto não impediu os cidadãos mais zelosos de o tratar como tal. O jornal de esquerda Sol reportou no mês passado que, depois de começar uma discussão com um cliente sobre o referendo, o dono de uma loja sem licença foi denunciado à polícia e detido durante algum tempo. Melih Gokcek, o presidente da Câmara de Ancara, avisou recentemente no Twitter que os cartazes da oposição e os lemas políticos nas paredes estavam a estragar a cidade e quem fosse visto a afixar cartazes novos devia ser denunciado à polícia.

Pode ser tentador para os cidadãos dos países ocidentais limitarem-se à noção de que os seus estados superaram o clima de paranóia da Guerra Fria. Steve Hewitt, um professor sénior de História na Universidade de Birmingham e autor do livro Snitch! A History of the Modern Intelligence Informer, refuta rapidamente esta ideia. Na maior parte das democracias, explica, são simplesmente as minorias que sofrem as consequências dos sistemas de informadores. “Penso que nas sociedades ocidentais, como esta vigilância muito focada se costuma concentrar em grupos marginalizados, o público em geral não se importa tanto.”

Desde o atentado de 11 de Setembro, o alvo principal são muitas vezes os muçulmanos. Quando era ministra dos Assuntos Internos, Theresa May impôs novas orientações que obrigavam escolas e universidades a denunciar alunos que revelavam tendências para apoiar o extremismo violento ou “criar um ambiente propício ao terrorismo”. Durante a campanha presidencial americana, Donald Trump exigiu “consequências grandes” para os americanos que não denunciassem suspeitas de que os vizinhos estavam a planear ataques terroristas.

Mas os Estados Unidos ainda têm um longo caminho a percorrer até chegarem ao nível da Turquia. Este país não se debate apenas com questões sobre os limites da liberdade de expressão e esforços para deslegitimar e intimidar a imprensa. A poucas semanas de um referendo com ramificações vastas para o futuro da nação, os académicos têm medo de discutir o assunto com os alunos e os votantes do “não” pensam duas vezes antes de publicar no Facebook. Nos jantares, nos táxis e em reuniões de família, as conversas afastam-se de temas sensíveis. Com um segmento da sociedade mobilizado para policiar espaços que o aparelho formal do Estado não consegue policiar, muitos acreditam que todo o cuidado é pouco.

O aspecto mais preocupante talvez seja o de que as denúncias por parte de cidadãos não se signifiquem apenas um sintoma de uma sociedade profundamente doentia – mas indiciem a causa de uma doença futura. No seu livro Naming Names, sobre a caça às bruxas do mccarthismo em Hollywood, o jornalista americano Victor Navasky escreve que os informadores “poluem o poço público”, “envenenam a vida em geral” e “destroem a possibilidade de existir uma comunidade”.

Bilgin Ciftci, que agora trabalha como médico particular depois de ter sido despedido por causa da Gollum, diz que esta é a questão essencial. “Eles estão a dividir as pessoas”, afirma. “Isto vai contra os nossos valores nacionais. Mas é isso que os nossos líderes actuais querem.”

Exclusivo PÚBLICO/ Financial Times

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