Copos e mulheres

o senhor holandês devia conhecer melhor a Europa para perceber que “copos e mulheres” estão profundamente embebidos em todo o lado laico da cultura europeia.

Em si, as hoje celebérrimas declarações de Dijsselbloem têm escassa importância. O homem disse aquilo que muitos pensam em parte da Europa sobre a outra parte da Europa, e eu serei a última pessoa a fazer uma cruzada contra o holandês. Aliás, este tipo de generalizações geográficas entre as partes em que se trabalha e aquelas onde se preguiça são típicas de qualquer zona da Europa em que, num país existe uma região industrial e um rural, como acontece na Espanha, na Itália, na antiga Checoslováquia, e no nosso muito pouco alemão Portugal, onde, como se sabe, os alentejanos gostam de viver à sombra de um chaparro sem fazer nada, ou Lisboa a viver à custa do Porto.

Dijsselbloem é uma personagem de um período negro da história europeia recente em que governantes de vários países falam com demasiado à vontade sobre os outros países seus aliados o que, digamos, é pelo menos pouco diplomático. Schäuble, Cavaco Silva e Passos Coelho, por exemplo, falaram sobre a Grécia, em moldes inaceitáveis pelas regras tradicionais de reserva e prudência, e dirigentes polacos, e checos fizeram a mesma coisa sobre outros países da sua “união” europeia, incluindo Portugal. Isto quanto à forma da boa educação internacional. Já o facto de Djisselbloem ter dito o que disse, no quadro da política de “ajustamento” que ele, como polícia de Schäuble no Eurogrupo, patrulhou, já tem um claro significado político. Do ponto de vista da gravidade das suas declarações, a história dos copos e das mulheres com que no Sul se esbanja o dinheiro à custa dos trabalhadores do Norte, é menos relevante do que as acções que o Eurogrupo sob sua direcção patrocinou via troika, com bastante aplauso interno. Aí a lição de moral, do trabalhador porfiado do Norte versus o dissipador no Sul, já tem um claro conteúdo político, que me faz terçar em armas contra o holandês, nos mesmos termos em que o fiz contra os seus émulos portugueses.

Mas por que raio foi Dijsselbloem falar de “copos e mulheres”, como a quinta-essência do viver por conta do Sul? Não penso que tenha dito o que disse, como alguns em Portugal escreveram, por ser um puritano da Europa protestante. Dijsselbloem é de uma família católica e estudou em escolas católicas, quer na Holanda, quer nesse bastião do catolicismo que é a Irlanda, e a sua carreira, após uma passagem pelo pacifismo esquerdista (imaginem!) é típica de um político profissional, desde as autarquias à assessoria ministerial e, por fim, o Parlamento e a participação no governo. Nesse caminho, imaginem os seus admiradores que por cá há, Dijsselbloem fez até nacionalizações, num partido que já foi muito à esquerda, até dos partidos socialistas mais à esquerda na Europa, mas que entretanto virou bastante à direita. Nessa viragem, ter escolhido um político de carreira como Djisselbloem para Ministro das Finanças, compreende-se muito bem.

Mas o senhor holandês devia conhecer melhor a Europa para perceber que “copos e mulheres” estão profundamente embebidos em todo o lado laico da cultura europeia que, felizmente para nós, é bastante forte em contraste com outras paragens, a começar pelos EUA. E senhor Dijsselbloem, quem vive muito para o Norte da Europa, onde faz frio, e onde durante grande parte do ano, já é noite ao meio da tarde, não escapa aos álcoois brancos, da aquavit ao vodca. Aliás, a melhor literatura moderna sobre “copos” que há na Europa não é sulista, nem vem de terras mediterrânicas, mas foi escrita na Rússia, onde se bebe até ao estado de estupor e onde estar bêbedo, como estava muitas vezes Ieltsin, não era socialmente mal visto. Ou foi escrita no Reino Unido, onde os políticos, intelectuais e escritores tem uma relação muito própria, às vezes snobmente criativa, com o copo de whiskey à sua frente e as senhoras, a começar pelas várias rainhas, tem um especial amor por aquilo que, na minha terra, era servido nas confeitarias como “chá branco” e que, em Albion, era o bom e velho gin. A caminho do Sul, passando por França, temos o absinto, de vasta memória impressionista e das margens do Mosela até Bordéus, uma vasta antologia de venenos vinícolas, faz a alegria dos povos que bebem “copos”. Está pois o senhor Dijsselbloem muito equivocado. Comparado com as pesadas bebidas nórdicas, o vinho é bem mais pacífico e seria preciso muito dinheiro do Eurogrupo, em forma de vários resgates, para que os “copos” caracterizassem o Sul em vez do Norte.

Isto quanto ao vinho, porque quanto às mulheres, estamos conversados. Aí o ecumenismo europeu é total, e presumo que uma parte significativa dos homens gosta de mulheres desde a Lapónia a Malta, e gasta com elas muito dinheiro e muitos copos para terror do nosso holandês. O melhor exemplo desse desvario feminino vem de um alemão, Fausto, que não se limitou a gastar o dinheiro mas vendeu a alma pela bela Gretchen, coisa que no Sul não é muito habitual.

É por isso que, se eu fosse o nosso secretário de Estado que teve com ele uma altercação, tinha levado para a circunspecta reunião o seu iPad ou iPhone, e punha-o a tocar uma música, como se fosse o hino nacional dos países do Sul, embora ela tinha sido escrita bastante mais para o Centro-Norte da Europa. E diria, olha lá ó Presidente, sabes como se chama esta música?  Repara em cada palavra, copos, mulheres e música. “Vinho, Mulheres e uma Canção” (Wein, Weib und Gesang) de Johann Strauss é uma muito conhecida e popular valsa cujo título deriva de um adágio muito comum em várias línguas e que diz mais ou menos isto “quem não gosta de vinho, de mulheres e de música permanece um imbecil a vida toda”.

Variantes deste adágio existem em várias línguas europeias, algumas sisudas e devidamente nórdicas, sueco, polaco, e até holandês, outras já a caminho do sul como Aimer, boire et chanter, que é aliás um título de um filme muito sério de Alan Resnais. O poema original, com este programa de vida, é muito popular em terras germânicas - verdade seja que da parte alemã e austríaca que passa por ser já meia italiana - e exprime aliás a pena pelo “pobre tolo” que não aprecia esvaziar já nem sequer um copo, mas um barril, ao lado de uma senhora de costumes, digamos, soltos.

Pobre senhor Dijsselbloem, insultado de “tolo” por um autor de valsas vienense!

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