Paint it black

Ao contrário do que Filipa Vicente pensa, a História não é tem que ver com opções políticas, não tem que ver com preto ou branco, mas sim com a verdade.

Filipa Lowndes Vicente assinou, no PÚBLICO, um longo artigo onde faz uma espécie de reportagem do que observou e escutou numa recente passagem pela Universidade de Brown (Rhode Island). A autora assistiu a conferências, viu exposições, leu jornais e revistas, falou com pessoas e verificou que há uma centralidade dos Estudos Negros na academia norte-americana que dantes não havia.

Como não podia deixar de ser, a história da escravatura faz parte dessa centralidade. Filipa Vicente sugere que essa história ganhou relevância e fez assinaláveis progressos com o afluxo e a proeminência dos estudantes e professores negros. Dá exemplos desse (suposto) progresso e refere os nomes de alguns historiadores da escravatura, curiosamente todos negros. Ou seja, transmite um retrato do qual os brancos foram varridos e isso falseia completamente a realidade, por várias razões.

A relevância da história da escravatura não é uma novidade destes tempos mais recentes. Pelo contrário, esse tem sido dos assuntos mais estudados pela historiografia desde meados da década de 1960, a ponto de ter dado origem a centenas de livros e a milhares de artigos escritos a tal cadência que começou a ser difícil a um investigador manter-se a par do que se produzia. Por isso, já nos anos 1990 Joseph C. Miller começou a publicar suplementos bibliográficos anuais (com 100 páginas ou mais) para que os estudiosos não perdessem o pé.

Filipa Vicente julga que é agora, com a nova centralidade proporcionada pelos departamentos de Estudos Negros, que os historiadores conseguiram finalmente apreender o escravo “como pessoa humana”. Ora, não é assim. Aquilo que a autora do artigo supõe ser um avanço proporcionado pelos Estudos Negros, não é avanço nenhum. É apenas chover no molhado e pregar a convertidos. Em 1967, por exemplo, já Philip D. Curtin tinha trazido até nós os pensamentos, sensações, alegrias e medos do escravo Olaudah Equiano. Há muito que os historiadores se interessam pelo escravo como pessoa humana.

Foi graças ao trabalho de Curtin, Miller e muitos outros que a história da escravatura deu grandes passos em frente. Eu, que fiz uma pequena parte desse trabalho historiográfico, li o que esses historiadores escreveram, debati com eles, publiquei livros com eles. Conheço-os. São, na sua esmagadora maioria, brancos e foram eles que construíram o edifício historiográfico que nos permite falar, com conhecimento de causa, dessas enormes aberrações a que chamamos escravidão e tráfico transatlântico de escravos.

Mas a população negra quer uma história feita pelos “seus” e contada à sua maneira. Quer ser ela a descobrir uma pólvora que já está descoberta. Lembram-se de uma música dos Rolling Stones chamada Paint it black? É o que tem sido feito nesta área do saber. Chegar, ignorar o que lá estava ou então pintar de preto e sugerir que agora, com a nova tinta, é que se fizeram grandes progressos e descobertas. A universidade norte-americana estará mais negra porque optou por não ver a parte branca, porque decidiu depreciar o enorme contributo dessa parte branca para a construção do conhecimento.

Esse não é o único erro de que enferma a perspectiva de Filipa Vicente. A autora escreveu, por exemplo, que Harriet Beecher Stowe, a autora de A Cabana do Pai Tomás, era uma abolicionista do Sul. Na verdade, Stowe era do Norte, do Connecticut. Escreveu, também, que a ex-escrava Harriet Tubman ajudava escravos a fugirem de comboio do Sul da América para o Norte, onde a escravatura já não era legal. Mas há um mal-entendido da sua parte. Essa actividade de auxílio à fuga de escravos do Sul era designada por Railroad Underground, sim, mas a expressão tem um sentido figurado, usa-se por analogia com o caminho-de-ferro, não é para ser entendida à letra. O habitual era que os escravos fugitivos se deslocassem a pé ou em carroças, usando caminhos pouco frequentados e pernoitando em casas onde havia gente para os apoiar e acolher. 

Há outros mal-entendidos mas não quero insistir nessa tecla. O que me interessa sublinhar é que, ao contrário do que Filipa Vicente pensa, a História não é tem que ver com opções políticas, não tem que ver com preto ou branco, mas sim com a verdade. É isso que os historiadores prezam (ou deviam prezar). E a verdade é que a história da escravatura foi feita sobretudo por brancos. É claro que todos os historiadores, independentemente da cor da sua pele ou do local onde vivem, são bem-vindos à História conquanto não apaguem nem ignorem o que foi feito antes.

Por coincidência, o artigo de Filipa Vicente saiu no dia em que Chuck Berry morreu. Tinha 90 anos, era negro, compôs e cantou Roll over Beethoven e várias outras músicas que puseram o rock nos nossos ouvidos e os nossos pés a mexer. Há, neste momento, milhões de melómanos brancos a venerá-lo e a prestar-lhe a devida homenagem como já antes tinha havido muitos outros brancos (entre os quais os Beatles) a copiá-lo e a tocar as suas músicas. E é justo que assim seja. Nenhum amante do rock pode ignorar Berry e o que lhe deve. A ele aplica-se a conhecida frase de uma canção de Gilberto Gil: “Vou fazer a louvação do que deve ser louvado.” Numa outra esfera e com outro objecto, Filipa Vicente e os departamentos de Estudos Negros em várias universidades americanas tendem a fazer precisamente o inverso.

 

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