Uma feira para tirar do armário a arte brasileira

O Brasil está por todo o lado na maior feira de arte da América Latina e isso é muito bom ou muito mau, dependendo do ponto de vista. Tornar mais internacional uma cena artística historicamente isolada é uma corrida de obstáculos que também passa pela SP-Arte.

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Fernanda Feitosa, a directora da SP - Arte Ênio César
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Linn da Quebrada que apresentou o seu filme no segundo andar do Pavilhão dr
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Obra de Lydia Okumura, Galeria Jaqueline Martins, sector Reperto Ênio César
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Ênio César
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Jessica Mangaba

Apesar das curvas do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, hashtag Oscar Niemeyer, que por estes dias de enchente ficam tão perfeitas no Instagram, apesar da inundação de arte histórica logo no piso da entrada (todo o século XX brasileiro num corte transversal, de Emiliano Di Cavalcanti, Ismael Nery e Cícero Dias a Tunga, Lydia Okumura e mesmo OSGEMEOS), apesar dos brigadeiros de capim-santo no fim da fila para o almoço, apesar da inabalável diferença de cor de pele entre quem limpa e quem suja, é possível esquecer momentaneamente que este lugar sobrelotado de gente maravilhosamente bem vestida fica de facto no Brasil até que Linn da Quebrada faz a sua aparição na SP-Arte, interrompendo os primeiros negócios (uns mais secretos do que outros) da tarde de pré-abertura da feira com a sua desbocada, e seguramente também deslocada, comitiva de rapazes em tronco nu e travestis de afros XXL. 

“Bicha, trans, preta e periférica”, a performer “e terrorista de género” que é também uma das fundadoras da ONG Atravessa — Associação das Travestis e Transexuais de Santo André subiu ao segundo andar do pavilhão para apresentar blasFêmea, o pequeno filme com que a plataforma Meio-Fio pôs a cena artística paralela das franjas de São Paulo no mapa da SP-Arte, mas também para dar uma resposta alternativa à dúvida existencial com que até então se entretinham os convidados estrangeiros menos entusiasmados com o que tinham visto nas 159 galerias representadas na 13.ª edição da feira. Sim, a maior feira de arte da América Latina afinal (também) é uma feira local, e isso não é necessariamente mau, dependendo do ponto de vista.

É uma discussão em curso nos bastidores desta como das anteriores edições da SP-Arte. O muro de obstáculos fiscais e/ou alfandegários que mantém na periferia do circuito uma cena artística historicamente isolada como a brasileira — é difícil as obras estrangeiras entrarem, e é difícil as obras nacionais saírem — tem certamente inúmeros efeitos perversos, a começar pelo empobrecimento do olhar do espectador, cronicamente privado do contacto regular com a criação contemporânea produzida no centro, e a acabar na frustração do mercado, que vibraria com uma política tributária mais liberal. Mas também é essa relativa marginalidade que faz com que a SP-Arte, pelo menos enquanto permanecer esmagadoramente brasileira, não seja só mais uma entre as cada vez mais numerosas feiras internacionais de arte.

Uma história de segregação

Paulo Jacopo Crivelli Visconti, o curador italiano — mas radicado em São Paulo — que organizou o novo sector Repertório da SP-Arte, reservado a artistas fundamentais para a compreensão das práticas artísticas contemporâneas, mas ainda não “devidamente reconhecidos” pelo grande público brasileiro, tem bem noção da ambiguidade da sua missão. Apresentar como novidade obras perfeitamente consagradas e integradas pelo sistema como as de Michelangelo Pistoletto (Continua), Richard Long (Lisson) ou Lothar Baumgarten (Franco Noero/Marian Goodman) pode fazer bocejar o público mais internacional da feira — mas continuamos no Brasil, onde artistas como estes (ou como a portuguesa Helena Almeida, trazida ao Repertório pela Galeria Filomena Soares, que a juntou no seu stand ao americano Dan Graham) talvez nunca tenham tido grandes, ou mesmo pequenas, exposições individuais. “Muita gente esquece, mas as feiras de arte, num país como o Brasil, também possuem um fim didáctico, educativo. Não tenho medo disso, acho que é uma boa oportunidade para que sejam vistos artistas que não estão em colecções e museus nacionais, dada a fragilidade do nosso circuito”, disse Paulo Jacopo Crivelli Visconti ao Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo.

No sentido inverso, a sobredose de arte brasileira que continua a caracterizar a SP-Arte, apesar do seu declarado esforço de internacionalização, pode constituir todo um programa de educação para o mesmo público internacional — o público especializado dos coleccionadores e dos galeristas, alguns dos quais poderão não saber que houve no Brasil uma Mira Schendel ou um Geraldo de Barros e que ainda há no Brasil uma Regina Silveira ou um Paulo Nazareth — em que a feira está de olho. Não há no mundo um lugar melhor para tirar essa história do armário do que São Paulo, a capital financeira do país, logo a caixa-forte (no sentido literal do termo) da arte brasileira. E também foi isso que a SP-Arte fez ao longo desta semana (de novo no sentido literal do termo): abrindo temporariamente aos seus convidados os apartamentos e as casas onde colecções privadas como a do casal Andrea e José Olympio Pereira ou da própria fundadora e directora da feira, Fernanda Feitosa, vão construindo a história da arte brasileira fora do domínio público, mas também apontando para o modo como ela é oficialmente contada, muitas vezes com empréstimos desses mesmos coleccionadores, por instituições como o Museu de Arte de Paulo (MASP) ou a Pinacoteca. 

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SP- Arte Ênio Cesar

Noutra frente, a fiscal, a SP-Arte também é um período de excepção para o mercado, explica Fernanda Feitosa aos jornalistas estrangeiros: em 2012, foi possível negociar com as autoridades estaduais (a ArtRio fez o mesmo no estado vizinho do Rio de Janeiro) um regime especial de tributação que reduz substancialmente a carga fiscal a que está sujeita a compra de obras de arte estrangeiras, desde que o negócio se concretize nos cinco dias da feira ou nos dois dias subsequentes. “Fora da feira, a soma dos vários impostos, federais e estaduais, sobre a importação de obras de arte pode agravar o preço da compra até 58%; durante a feira essa taxa baixa para uns 17%”, resume. A medida “ajudou imenso a dar um boost à afirmação internacional da SP-Arte” e a aliviar um mercado que “este fardo fiscal manteve segregado por muitas, muitas décadas”, continua a directora da feira. 

A arte ou a carne

Aproveitando o bónus, a White Cube, de Londres, uma das 44 galerias estrangeiras presentes nesta 13.ª edição da SP-Arte, destaca no seu grande stand muito bem situado na zona nobre do pavilhão obras de Mona Hatoum, Antony Gormley, Damián Ortega ou Gabriel Orozco. “Acho que os coleccionadores não se importam de pagar uma taxa de 17% para adquirir peças realmente importantes como aquelas que nós trazemos”, responde apressadamente ao PÚBLICO o director Peter B Brandt num intervalo entre as suas inúmeras solicitações. Com ou sem fardo fiscal, “há em São Paulo um grande núcleo de clientes que compram bem” e aos quais, diz, “vale sempre a pena mostrar obras fortes”.

Mas se os galeristas estrangeiros desdramatizam o assunto, os agentes locais aproveitam todas as oportunidades para enfatizar que a situação actual é bastante penalizadora para o meio e que o proteccionismo não protege sequer os artistas brasileiros. “A taxação é ruim para os dois lados: o processo de exportação de uma obra de arte brasileira também é muito exigente do ponto de vista burocrático”, explica-nos Maria Eugênia Abàtayguara, directora da galeria paulista Mendes Wood DM, que, apesar dos entraves, trabalha muito regularmente com artistas estrangeiros. É, sublinha, uma corrida de obstáculos que exige grande jogo de cintura, fora e dentro do país: “Abrimos um espaço em Nova Iorque e na próxima semana vamos abrir outro em Bruxelas justamente para podermos lidar com esse engessamento do mercado e dar mais visibilidade internacional aos artistas brasileiros. E quando temos exposições de artistas estrangeiros nem sempre mandamos vir as obras de fora, porque fica absurdamente caro desalfandegá-las; muitas vezes convidamos o artista a produzir novas peças cá, mas organizar-lhe um visto de trabalho também é um processo complicado que requer tempo e paciência.” 

Foi assim que a influente Nara Roesler procedeu para poder ter o conjunto de “obras situadas” do sul-africano Daniel Buren que acaba de inaugurar na sua galeria de São Paulo, é assim que Fernanda Brenner, a directora de uma das mais singulares experiências no circuito local das artes visuais, o Pivô, no mítico Edifício COPAN, procede normalmente, e não apenas por lhe interessar artisticamente que cada nova exposição resulte do investimento específico do artista naquele espaço. “É claro que não há exposições de artistas estrangeiros no Brasil, as despesas alfandegárias são loucas”, diz aos jornalistas que a visitam antes de seguirem para mais um dia na feira. 

Noutra ponta da cidade, o Morumbi, onde mais uma aventura invulgar, o Auroras, acaba de inaugurar a sua terceira exposição (a primeira com artistas internacionais), o jovem coleccionador Ricardo Kugelmas defende, junto à piscina vazia da casa modernista que herdou dos avós, uma mudança legislativa que aproxime de uma vez por todas o Brasil da produção contemporânea internacional. “A colecção do MASP é óptima, mas acaba nos anos 30: não chega ao abstraccionismo, não chega à Pop Art. Se eu fosse um jovem artista brasileiro, gostaria de ver um De Kooning ou um Jasper Johns num museu: pouca gente pode ir a Nova Iorque.” Terá de ser, admite, um esforço bilateral: “É preciso resolver isso, porque há muito dinheiro no Brasil: os coleccionadores têm de estar dispostos a doar aos museus, e o Governo tem de estar disposto a conceder-lhes incentivos fiscais.”

Quando é que isso vai acontecer? “Este é um problema que existe há anos e a sensação é de que sempre vai piorar, não tenho muita esperança”, prognostica Maria Eugênia Abàtayguara. “Há inúmeras dificuldades na legislação brasileira, acho que esta não é uma prioridade”, concorda Ricardo Kugelmas, O Brasil será o país onde coleccionadores como o que vemos a rondar uma obra de 1995 de Adriana Varejão mandam os seus homens perguntar discretamente quanto vale (2,5 milhões de reais, ou seja, cerca de 750 mil euros), ou onde mulheres cobertas de jóias declaram bem alto que adorariam receber de presente do marido a peça de Shirley Paes Leme em que a frase “Você derramou estrelas em meu caminho” escorre pela parede em letras de bronze (nove mil reais, cerca de 2700  euros). Mas continua a ser também o país onde dezenas de vagabundos circulam sem roupa pelas avenidas da Baixa de São Paulo, onde a estrutura suspensa do MASP é o único tecto a cobrir os sem-abrigo da Avenida Paulista, e onde a menos de um quilómetro da casa dos avós de Ricardo Kugelmas as manifestações pedem outro tipo de medidas, desesperadamente mais urgentes: “Governador, por favor repensar o aumento da carne.” 

 

O PÚBLICO viajou a convite da SP-Arte

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