Já existe uma nova Amália: ela própria

Livros e reedições de discos mostram uma Amália que se descobre inovadora a cada passo, herdeira de si mesma.

Na semana passada saiu um novo livro, amanhã sai um novo disco. O livro é de Fernando Dacosta (Amália, a Ressurreição, ed. Casa das Letras) e o disco, um triplo CD, chama-se Amália em Itália, A Una Terra che Amo, e traz-nos as espantosas gravações que “La Rodrigues” fez em italiano. Nos dezassete anos do século em que ela não entrou, Amália, ainda assim, vive. Não só na memória, mas no muito que dela nos vai chegando. Já a edição de Segredo, em 1997 (com gravações inéditas feitas entre 1965 e 1975), deixava antever o muito que não conhecíamos e que nos últimos anos, com o aplicado trabalho de pesquisa de Frederico Santiago a partir dos arquivos da Valentim de Carvalho, nos chega em todo o seu esplendor. Não só pelo tratamento técnico das gravações, que é excelente, mas também pela revelação de inúmeros inéditos que nos trazem uma Amália sempre renovada e legítima herdeira de si própria. No recente ciclo de conversas com Mísia no Museu do Fado, uma das sessões chamou-se precisamente Amália e a guerra dos tronos. E Mísia, que fala sempre dela no presente (“Amália é, Amália canta…”), bem como Tiago Torres da Silva, que se lhe juntou nessa sessão, concluíam o óbvio: o “trono” de Amália não está nem estará vago. Por muitos e bons cantores e fadistas que haja, nenhum preenche o seu lugar.

Podemos percebê-la melhor através de livros, sejam eles testemunhais e memorialistas como os de Jean-Jacques Lafaye (Amália, Uma Voz no Mundo), Estrela Carvas (Os Meus 30 Anos com Amália) ou a inultrapassável Biografia que dela fez Vítor Pavão dos Santos (reeditada em 2005); ou de reflexões sobre a sua obra, como Pensar Amália, de Rui Vieira Nery, ou Amália e os Poetas, de Pavão dos Santos; mas é ouvindo-a, imergindo no muito que gravou, que ela se dá a conhecer na sua genialidade. Nas reedições, há um lote imperdível e sequencial, que a agiganta. Começa em Busto (com For Your Delight e o ensaio/entrevista “As Óperas”), com David Ferreira, em 2002; e prossegue em Com que Voz (2010, com David já a co-editar com Frederico Santiago), Amália no Olympia (2011), Amália no Chiado (2014), Someday (as sessões de 1965 com Norrie Paramour, 2015), Tivoli 62 (com Amália, Alfredo Marceneiro, Lucília do Carmo, Fernando Farinha, Filipe Pinto (2015), Fado Português (2015), Amália Canta Portugal (2016) e gora Amália em Itália. Um deslumbramento sonoro, pois a cada audição vamos percebendo o que perdemos: algumas interpretações magistrais que não constavam dos registos de estúdio, onde Amália se supera, competindo consigo mesma num terrenos onde não tinha, nem tem, rival.

Era ela, também se disse no citado debate, a única a fazer sombra a si própria. E queria ser sempre melhor, numa constante busca da perfeição. “A minha inquietação é feita do que eu sofro nos outros, do que eu sofro dos outros”, diz ela citada no livro de Fernando Dacosta, que nos leva a viajar por memórias daquela que foi a maior cantora do século XX português e uma das maiores do mundo. E diz também: “Os jovens fadistas recebem, sem darem por isso, influências do que eu deixei.” Ou: Tenho qualquer coisa em mim de Portugal que as pessoas sentem, como se fosse uma erva.” Ora as ervas, dita a natureza, renascem, como Amália renasce nestas edições. Sem que nenhum Panteão reduza a pedra o cristal da sua voz.

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