Espanha/Escócia: uma mudança fundamental (com Gibraltar ao largo)

Espanha era o seguro de vida do Reino Unido; agora parece deixar de ter sido. O que poderá explicar uma alteração tão séria deste dogma da política europeia espanhola? Talvez Gibraltar.

1. Alguns deram conta, mas grande parte não se terá ainda apercebido, de que, no fim de semana passado, a diplomacia espanhola tornou pública uma mudança fundamental de orientação na política europeia. Em entrevista ao jornal El Pais e pela primeira vez, o ministro das Relações Exteriores admitiu sem reservas que a Espanha não teria uma oposição de princípio à adesão de uma Escócia independente à União Europeia. Quem conhecer a doutrina espanhola sobre a matéria, seja a explicitada em declarações públicas, seja a veiculada nos corredores e nos bastidores de chancelarias e de reuniões, não pode deixar de ficar surpreendido. Até aqui, governantes e diplomatas eram absolutamente taxativos e terminantes: nunca a Espanha dará aquiescência a uma adesão da Escócia à UE. Por vezes, esta inabalável afirmação de princípio era temperada pela concessão de que, se declarada a independência, a Escócia teria, como qualquer outro candidato, de iniciar um complexo e moroso processo de adesão, com negociações sectoriais. Tudo como se o seu território e os seus habitantes nunca houvessem pertencido à União. Mas subentendia-se, claro está, que o processo ia ser doloroso e que a Espanha se reservava sempre um direito de veto à entrada desta “desertora” do Reino Unido. Em todo o caso, mesmo com esta declinação, as tomadas de posição públicas foram sempre acompanhadas de esclarecimentos e interpretações oficiosas de que a Espanha nunca permitiria o acesso da Escócia à UE. Esta posição era naturalmente uma enorme carta de conforto para Inglaterra que depositou na Espanha a confiança de último garante da integridade do Reino Unido.

2. A posição espanhola era facilmente compreensível. Vivendo a Espanha fortes tensões secessionistas, hoje em dia basicamente protagonizadas por movimentos e governantes catalães, tinha e tem de dar um sinal interno de que os “independentistas” não terão sucesso. E de que, mesmo que consigam os seus intentos de autodeterminação, nunca conseguirão integrar a UE. Ficarão, pois, numa situação de quase total isolamento político, económico e comercial. Com efeito, como de há muito venho aqui escrevendo, o viço e o fulgor das aspirações independentistas da Escócia, da Catalunha, da Flandres e até do País Basco (que espera pacientemente pelo devir catalão) apenas se compreendem no contexto da UE. O raciocínio é singelo: “se Edimburgo tem Bruxelas, já não precisa de Londres” e “se Barcelona dispõe de Bruxelas, já não carece de Madrid”. De resto, e este é outro argumento, a Escócia ou a Catalunha podem pedir meças a países com assento no Conselho Europeu como a Letónia, Chipre, a Eslovénia ou o Luxemburgo. A lógica é, portanto, de que o enquadramento europeu tornou em grande medida dispensável a integração num quadro estatal tradicional como era o britânico ou o espanhol. Eis o que significa que estas independências só fazem sentido – ou, pelo menos, ganham muito mais sentido – no contexto político, geopolítico, constitucional e institucional da UE. Daí que se esses países lograssem a independência, o veto à sua integração europeia fosse o tiro mais duro e mais eficaz no coração das suas aspirações. Sem integração económica, sem acordos comerciais, sem inserção institucional no quadro europeu, restaria a uma Catalunha e a uma Escócia independentes vogarem isoladas e sós no espaço sideral. Impedir o acesso à União e a tudo o que ela significa seria a condenação ao mais cruel ostracismo, implicaria a derrota rotunda dos dinamizadores das independências e terminaria numa completa frustração dos cidadãos que neles haviam confiado. Por isso, a Espanha sempre falou grosso e forte, sempre falou alto e claro: “havendo secessão, não há integração!”

3. Com as declarações do ministro espanhol, o caso muda de figura; e muda quase radicalmente. É certo que, lidas e relidas as suas palavras, ele parece exigir uma secessão prévia da Escócia do Reino Unido e um ulterior preenchimento das condições de acesso, como se de um novo e puro candidato se tratasse. O que poderia levar muitos a dizer que, afinal, não há uma mudança de orientação. Mas basta atentar no tom, na ideia de que não intercede nenhum obstáculo de princípio e na referência à diferença para o caso espanhol para perceber que algo mudou. E que a Espanha – tal como outros grandes Estados europeus (a França e a Alemanha, nomeadamente) – já está disposta a jogar a carta escocesa nas negociações do "Brexit". Sim, porque não haverá maior desaire para a posição britânica do que culminar o processo de saída da União Europeia com a dissolução do Reino Unido. E o agitar desse fantasma será um enorme trunfo negocial dos 27. Até aqui a Espanha era o seguro de vida do Reino Unido; agora parece deixar de ter sido. O que poderá explicar uma alteração tão séria deste dogma da política europeia espanhola? Talvez Gibraltar. É absolutamente impressionante a obsessão dos dignitários espanhóis com Gibraltar e com a velha proposta de “co-soberania” desde que o "Brexit" saiu vencedor do referendo de 23 de Junho. Que a obsessão chegue ao ponto de a Espanha aceitar uma futura adesão escocesa, mostra bem como Madrid procura associar os seus antigos desígnios sobre o rochedo ao desenlace do "Brexit". Que os britânicos estão cientes disso, é também evidente, a ponto de já haver quem pateticamente tenha falado numa reedição da guerra das Falkland/Malvinas, 35 anos depois. Não sobejam dúvidas que, depois da fronteira da Irlanda do Norte, a fronteira desta colónia britânica será um dos pontos políticos mais sensíveis das negociações.

Duas coisas são para mim evidentes. Uma adesão da Escócia será sempre feita em condições bem mais favoráveis do que as de um candidato normal que se apresente ex novo. E essa adesão, a ocorrer, acabará por ser um precedente para os aspirantes espanhóis, por mais que a Espanha queira diferenciá-los.

SIM. Nuno Crato. Apesar de vilipendiado, o tempo só lhe dá razão. Primeiro, com os resultados do PISA, agora com a rendição do Governo aos cursos profissionais. O duplo padrão é a pós-verdade “à portuguesa”.

NÃO. Projectos sobre o prazo internupcial. Apesar da intenção de não discriminação, PS e BE não percebem que a diversidade se promove na distinção entre casamento e união de facto e que a filiação é assunto delicado.   

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