A estupidez humana

A estupidez humana revelou-se, naquele momento, na sua forma mais básica, através da violência gratuita e injustificada.

Escrevi aqui, há poucas semanas, sobre a realidade do que é ser-se árbitro do futebol profissional: receber visitas intimidatórias no centro de treinos, ter paredes pintadas num estabelecimento comercial de um familiar, esperas à porta do trabalho da mulher para ameaçar a ela e ao filho, perseguições na auto-estrada, janelas de casa apedrejadas e mensagens ameaçadoras para os telemóveis e páginas pessoais nas redes sociais. Nada disto é futebol. Nada disto faz sentido. É tudo, apenas, estupidez humana.

O futebol distrital e, consequentemente, a arbitragem distrital é diferente. Nem melhor, nem pior. Apenas diferente.

Diferentes, mas sempre difíceis de explicar, são também as motivações que levam alguém a querer manter-se na arbitragem a partir do momento em que não têm, seja porque razões forem, possibilidades de ascender ao futebol profissional. Digo-o por experiência própria. Aos 37 anos de idade, quando por impeditivos regulamentares deixei de poder aspirar à subida à primeira categoria (futebol profissional), perdi a motivação para dirigir jogos de futebol. Não deixei de ser árbitro. Nunca deixarei. Mas perdi a vontade de estar em campo. Felizmente, para o futebol, nem todos somos iguais.

Felizmente para o futebol há homens, e mulheres, que continuam todos os fins-de-semana a dirigir jogos de futebol. São “voluntários masoquistas” que, nos distritais, aceitam receber 5 ou 10 euros para arbitrar um jogo. Maior parte das vezes, sem protecção policial. Fazem 4 ou 5 jogos por fim-de-semana. Destroem namoros e casamentos porque nunca estão em casa. Saem de casa, para treinos e jogos, com o coração desfeito quando os filhos pedem, a chorar: “Não vás. Fica a brincar comigo...”. Não convivem com os amigos porque precisam descansar para, no dia seguinte, arbitrarem dois ou três jogos. São insultados em campo. Perdem “amigos” na escola. Têm problemas no trabalho porque um colega ou patrão não gosta de árbitros. São muitas as razões para explicar porque é que não se percebe que ainda haja quem seja árbitro do futebol amador...

Mas há paixões que não se explicam. Vivem-se. Sentem-se. Nem a estupidez humana consegue destruir uma verdadeira paixão.

O meu colega Zé (convivemos alguns anos nas mesmas categorias do futebol nacional) é árbitro dos quadros nacionais da Federação Portuguesa de Futebol. É “apenas” um dos árbitros mais experientes da sua categoria. É o árbitro que costuma ser indicado para grande parte dos jogos mais difíceis do Campeonato Nacional de Seniores. Pode, caso queira, optar por dirigir apenas jogos dos quadros nacionais. É um apaixonado pela arbitragem e, por isso, está sempre disponível para colaborar com o seu conselho de arbitragem para dirigir jogos dos campeonatos distritais da Associação de Futebol do Porto.

Este domingo, num campo de futebol distrital e a fazer (bem) aquilo que gosta, foi violenta e estupidamente agredido. Foi vítima de um crime. A estupidez humana revelou-se, naquele momento, na sua forma mais básica, através da violência gratuita e injustificada.

Zé, tens todas as razões para nunca mais querer voltar a entrar num campo de futebol. A tua mulher e os teus filhos têm, agora mais do que nunca, todas as razões para exigirem que fiques com eles. Os teus amigos estão ansiosos por terem mais tempo contigo.

Zé, vais ter algum trabalho a explicar-lhes que ainda não é desta. Que não é um acto selvagem e isolado que destrói o amor que sentes a esta causa. És mais forte do que a maioria. És mais apaixonado que a maioria. Regressar rapidamente será mais forte do que tu, não é? Ainda tens mais três anos. Boas apitadelas!

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