A irreconhecível diferença

Duas pequenas óperas de características muito distintas foram apresentadas no Teatro de São Carlos. Um projecto duplo muito estimulante, apesar da impossibilidade de transpor o abismo que separa as obras.

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Pagliacci, a famosa ópera de Leoncavallo Rui Gaudêncio

A ideia era, antes de mais, apresentar Der Zwerg (O anão), de Zemlinsky, no Teatro de São Carlos. Pagliacci, a famosa ópera de Leoncavallo, serviria sobretudo como veículo para acompanhar uma nova produção da muito menos conhecida ópera do compositor vienense. Mas o projecto evoluiu para uma colaboração mais próxima e mais intensa, com duas encenadoras (Rodula Gaitanou e Nicola Raab) partilhando uma “dupla” cenografia de José Capela e a direcção musical de Martin André. O desafio era transpor o abismo que separa as duas óperas, procurando dar coerência a esta “sessão dupla”. Mas seria possível?

Pagliacci é uma obra do “verismo” italiano com uma questão central muito simples – como pode o teatro mostrar a vida e o interior da alma humana, por trás das máscaras. Depois de começar como uma comédia, inventa-se ali um “teatro dentro do teatro”, onde acabarão por convergir tragicamente, no segundo acto, o palco e a vida. A pistola-adereço – muito pertinentemente mostrada por Tonio no prólogo — afinal pode matar “a sério”. Deste jogo emerge um teatro humanista, e a música de Leoncavallo toca (ainda) o coração de todos.

O palhaço Canio começa por dizer na famosa ária Recitar! Mentre preso dal delírio: “Não és um homem! És palhaço!” Para depois dizer o contrário (“Não, palhaço não sou!”), na comédia representada, colocada nesta produção num literal “São Carlos dentro do São Carlos”. A encenação eficaz da encenadora grega, foi capaz de pôr o coro connosco (os espectadores “reais”) a ver tudo isto. E bem.

Pagliacci teve ainda a sorte de contar com um conjunto muito equilibrado de cantores. Peter Auty foi um Canio em “crescendo”— depois de um início um pouco frágil acabou por fazer uma excelente récita. Norah Amsellem construiu uma Nedda cativante, mas a orquestra foi um pouco confusa no início da segunda cena, o que não a favoreceu. Depois, no belo dueto amoroso com um espectacular Sílvio (o tenor Thomas Lehman), e em todo o segundo acto, foi impecável. O excelente barítono Igor Gnidii fez mutíssimo bem as maldades que tinha de fazer no papel de Tonio. Mas o humanismo de Leoncavallo não é de “bons e maus”. Ninguém é só bom nestes palhaços: todos traem, todos mentem, todos odeiam e amam.

Depois do intervalo — o tal abismo — veio algo completamente diferente. A encenação decidiu pôr o jardim de Der Zwerg fora de cena, inventando um cenário muito mais fechado e abstracto, com panos subindo e descendo até ao dramático final com o espelho onde o estranho anão percebe que aspecto tem realmente. A princesa de Oscar Wilde (autor do conto O aniversário da princesa que deu origem à ópera) é talvez mais “menina” ainda (e mais inquietante) do que esta produção sugeriu. Mas está lá o contraste entre a beleza terrível dela e a horrenda beleza do anão. Dois excepcionais cantores fizeram um trabalho admirável (Peter Bronder e Sarah-Jane Brandon), bem acompanhados por três cantoras (as criadas) com uma rigorosa composição de canto e gesto (Carla Caramujo, Filipa van Eck, Carolina Figueiredo), um eficaz Mordomo (Nuno Pereira) e uma outra personagem central, Ghita, interpretada em grande estilo por Dora Rodrigues. É Ghita afinal a única que entende e pode amar “o feio”. É a única ponte “humana” nesta ópera onde o “grotesco abstracto” — num estilo próximo do expressionismo — emerge através da música de Zemlinsky. Música de um romantismo enlouquecido, por vezes genial na forma de orquestrar. Estranhamente, a orquestra esteve melhor nas imensas dificuldades de Zemlinsky do que nas simplicidades de Leoncavallo.

Mas, para além da música, a grande diferença é que o ser humano, em Der Zwerg, não é um dado adquirido como em Pagliacci. Aqui o humano interroga-se, num terror existencial, ao espelho. Um grande espelho no palco permite ao anão “horrendo e belo” reconhecer-se. E que vê ele, como todos nós? A irreconhecível diferença. Mas é assim mesmo que eu sou?

 

Pedro Boléo

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