Fátima já não é um tabu e espera um milhão de dormidas este ano

Associação empresarial e autarquia destacam a mudança de posição do Governo em relação à cidade, enquanto destino turístico

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Com a abertura do Hotel Áurea, em Maio, a cidade contará com 12 hotéis de quatro estrelas Adriano Miranda

Quando, há cerca de dez anos, teve que fazer uma apresentação perante uma plateia ligada à hotelaria, Alexandre Marto aproveitou para mostrar o que a página da internet do Turismo de Portugal (TP) tinha sobre Fátima. “Não aparecia nada, rigorosamente nada. Colocava-se a palavra Fátima e não aparecia uma fotografia, um texto. O que é surrealista. É uma das marcas mais reconhecidas em todo o mundo e não aparecia”, diz o dirigente da ACISO – Associação Empresarial Ourém-Fátima e, em simultâneo, membro do FHG – Fátima Hotels Group, o maior grupo hoteleiro da cidade que, este ano, se prepara para receber o Papa Francisco, aquando do centenário das ditas aparições. Era outro tempo, reconhece, agora que a cidade se prepara para atingir um milhão de dormidas num só ano. “Fátima sofreu sempre de preconceito. Hoje já não há vergonha [de Fátima]. Estamos numa fase de paz”, diz.

Voltemos à internet. Na página Visit Portugal, do TP, o centenário que este ano se celebra em Fátima é um dos destaques. Há um texto a explicar o que se comemora ali, com remissão para a página do Santuário de Fátima, a agenda cultural e um segundo texto, dedicado aos Caminhos de Fátima – os vários percursos que podem ser percorridos a pé pelos peregrinos. A forma como o país olha para o que se passa naquela freguesia do concelho de Ourém mudou, até por parte do Governo, admite Alexandre Marto e corrobora o presidente da Câmara de Ourém, o socialista Paulo Fonseca. “Durante décadas, o país fez de Fátima um tabu, uma coisa proibida. Como se fosse uma espécie de campânula, e isto durou até há pouco tempo. A verdade é que foi ‘a geringonça’ o primeiro Governo que deu reconhecimento a Fátima”, diz o autarca.

O socialista elogia o desempenho da colega de partido, a secretária de Estado do Turismo, Ana Mendes Godinho, lembrando que, ainda recentemente, no stand do TP numa feira de turismo no Brasil, existia “uma coreografia virada para o centenário”. “Inteligentemente, ela percebeu que isto é muito importante para o país e que tinha um potencial incomensurável. Temos mais dificuldade em vender sol e mar no Brasil do que em vender Fátima”, diz. Alexandre Marto concorda. Aliás, ele diz mesmo que o sucesso do FHG, criado há mais de uma década, se deveu, em grande parte, à inacção do TP em promover o destino no exterior. “Sempre achei espantoso o Estado português virar costas à marca. A nossa força, no início, nasceu exactamente disso. Quando saí com o grupo FHG para promover Fátima e percebi que ninguém o estava a fazer, achei que estavam loucos, mas foi fantástico para nós. As pessoas recebiam-nos logo”, diz.

Assim, o grupo com dez hotéis (o 10.º, o Hotel Áurea, de quatro estrelas, deverá abrir no início de Maio) e mais de mil camas pôde expandir o nome FHG, antes da “evolução positiva” que Marto vê hoje na forma como o Governo olha para o destino turístico. “Há, hoje, um olhar completamente diferente para Fátima, da região, do Turismo de Portugal e da Secretaria de Estado do Turismo”, diz. E esse olhar tem-se sentido – Fátima, enquanto destino turístico tem crescido, à semelhança do que acontecem a outros pontos de interesse do país. “Em 2015, vendemos 727 mil noites e este número não inclui o alojamento prestado pelas congregações religiosas. Se incluirmos essas camas e as do Santuário de Fátima, já teremos atingido muito mais de um milhão. No ano passado, esse número subiu, na continuação do crescimento do turismo em Portugal. Temos, em Fátima, cinco milhões de visitantes por ano. Assumimos que, em 2016 - ainda não há dados oficiais – houve um crescimento de 10%, pelo que teremos tido mais de 800 mil dormidas. Se este ano crescer 20%, o que penso que se consegue com facilidade, chegamos a um milhão de dormidas, só em estabelecimentos hoteleiros. Fizemos [na ACISO] um inquérito e acredito que o crescimento das noites se situará entre os 15% e os 20%”, contabiliza Alexandre Marto.

Longe parecem, portanto, os tempos em que “Fátima não era algo que devesse ser promovido, mas algo que ou não era visto como turismo ou que envergonhava o país”, afirma o empresário. A geração que cresceu no pós-25 de Abril parece ter alcançado um distanciamento da conotação política que Fátima sempre teve, desde o início – primeiro, enquanto arma na guerra religiosa que a I República travou com a Igreja e, depois, enquanto centralidade da religião nacional, promovida pelo Cardeal Manuel Cerejeira, durante o Estado Novo de António de Oliveira Salazar. “Chegamos a um ponto, tal como aconteceu com o fado, em que Fátima é uma questão resolvida para o povo português. Há quem goste, quem não goste, mas se perguntar qual é a canção nacional, toda a gente diz que é o fado. Fátima está numa fase de resolução do processo. De os portugueses fazerem as pazes com ela”, diz Alexandre Marto.

Sem surpresa, os portugueses continuam a ser aqueles que mais pernoitam em Fátima. Os dados do Instituto Nacional de Estatísticas fornecidos ao PÚBLICO pela ACISO indicam que em 2010 – data da visita do Papa Bento XVI – houve 164.115 dormidas de cidadãos nacionais na cidade. Esse número sobe para 181.873 em 2014. No global, os estrangeiros ultrapassam estes valores – 368.536 em 2010 e 440.285 em 2014 –, mas se individualizarmos cada uma das nacionalidades, só os espanhóis cruzam a barreira das cem mil dormidas: 115.470 em 2010 e 136.873 em 2014.

No Top 10 dos que mais dormiram em Fátima, a Europa surge em destaque, apenas com o Brasil e os Estados Unidos da América (EUA) a conquistarem um lugar no pódio. Em 2014, os brasileiros foram mesmo a 5.ª nacionalidade mais representada nas dormidas em Fátima (24.971), surgindo, logo a seguir, os EUA (23.278). 

Curiosamente, os dados do Santuário de Fátima sobre as peregrinações estrangeiras ali realizadas no ano passado, apresentam uma maior diversificação geográfica dos presentes. Espanha continua a liderar e Itália, Polónia, EUA, Brasil e França (todos presentes na lista das nacionalidades que mais pernoitaram em Fátima) também lá estão, mas a lista inclui também peregrinações oriundas da Indonésia (6.º lugar), Coreia do Sul (7.º lugar, à frente da França) e Índia (8.º). A Ucrânia fecha a lista. Os dados do Santuário indicam que, em 2016, quase 13 mil cidadãos indonésios, sul-coreanos e indianos passaram por ali.

A perspectiva de futuro, para Alexandre Marto, continua a ser de crescimento. “Acho que houve uma evolução de toda a gente e também dos empresários de Fátima. A oferta melhorou imenso, os hotéis são cada vez melhores”, diz. Vários aproveitaram a vinda do Papa, este ano, para fazerem obras e, com a abertura do Áurea, a cidade contará com 12 hotéis de quatro estrelas. Para que o turismo organizado, que leva gente à cidade fora da data principal do 13 de Maio, continue a crescer, a receita do responsável da ACISO é simples: “O Estado precisa de fazer o que compete ao Estado e a Igreja o que compete à Igreja. À Igreja compete divulgar a mensagem de Fátima, acolher os peregrinos e ter um programa pastoral. Ao Estado compete utilizar Fátima como uma mais-valia para o país, como uma âncora turística importante e, portanto, promove-la nesse sentido”, defende.

Especulação? “Se calhar há mais notícias do que vendas.”

Não é preciso grande esforço. Uma pesquisa no motor internacional de buscas de alojamento Booking, realizada esta semana, continua a apresentar ofertas para Fátima. Os preços é que não serão do agrado da maior parte das pessoas. Na quarta-feira à tarde, o hotel Anjo de Portugal, de quatro estrelas, oferecia a noite de 12 para 13 de Maio por 2500 euros (com pequeno-almoço) e o Luna Fátima Hotel pedia 1750 euros por um quarto duplo. A oferta mais barata, a 600 euros, era da Sonia’s House – um alojamento que aparenta ser uma casa particular, a pouco mais de quatro quilómetros do Santuário. No dia seguinte, as mesmas ofertas continuavam lá.

As notícias sobre alguns preços praticados em Fátima, para as celebrações do 13 de Maio já encheram várias páginas de jornais, com a casa de hóspedes que oferecia uma noite em saco-cama por 992 euros a surgir como o exemplo da especulação atingida na cidade. Mas Alexandre Marto recusa que exista “um crescimento especulativo” na hotelaria de Fátima. “Se calhar há mais notícias do que vendas”, diz.

Com 43 hotéis registados em 2015 – o município de Ourém, a que Fátima pertence é o terceiro do país com mais hotéis, logo a seguir a lisboa (155) e Porto (71), segundo os últimos dados do INE – e com vários deles a aproveitar o centenário e a visita do Papa Francisco para fazerem uma limpeza de rosto e, em alguns casos, uma melhoria que lhes permita subir de categoria, Fátima já tem a maior parte dos quartos de Maio vendidos há muito, garante Alexandre Marto. “A maioria dos hotéis em Fátima está agora a fechar 2018”, diz, garantindo que “80%” deles vendeu a noite de 12 para 13 de Maio a “preços normais”, mas com outro tipo de contrapartidas. “Vendi ontem 50 camas para 12 de Maio de 2018, mas o operador garantia-me 50 grupos ao longo do ano. Isto é que é o habitual. É a única forma de manter o hotel vivo”, explica.

Sobram, admite, “20% [de alojamentos] que vão para a internet”. E isso “é uma novidade”, mas que não convence o empresário. “Os preços disparatados surgem na internet e mantêm-se na internet precisamente porque são disparatados. Imagine que alguém cancela a noite de 12 de Maio deste ano, por alguma razão. O quarto passa a estar disponível. Se o colocar à venda na internet a 150 euros, ele vai desaparecer em segundos e não é notícia. O que fica é o que está lá há meses e não se vende”, diz.

Aceitando que “há coisas delirantes” e pessoas que “arriscam”, colocando quartos a milhares de euros para a noite mais importante do ano em Fátima, Alexandre Marto argumenta que a indignação que esses casos desperta é exacerbada por ser, precisamente, ali. “Nós aceitamos que um quarto em Lisboa seja vendido a mil euros, mas em Fátima não. Parece que em Fátima as pessoas não têm direito a vender os quartos ao preço de mercado. Posto isto, eu percebo que a leitura moral que se faz é menos forte em Lisboa do que aqui [por ser um local de peregrinação] e acho que os hoteleiros têm que ter alguma atenção com essa leitura”, defende.

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