O papel na Reforma

As reformas florestais são mais ou menos como as telenovelas: os actores mudam mas o guião é basicamente o mesmo e o fim é o que se adivinhava desde o primeiro episódio.

“Onde Sancho vê moinhos

D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.

Vê gigantes? São gigantes.”

 

Foi de António Gedeão que me lembrei enquanto ouvia o Senhor Ministro discorrer sobre a reforma da floresta, no dia 24 de Março, na Gulbenkian: ouvia-o descrever as gigantescas medidas que reformarão a floresta e eu, Sancho me confesso, só conseguia ouvir moinhos.

Independentemente de me fazer confusão não o ter ouvido falar uma única vez de competitividade da produção florestal e de pagamento de serviços de ecossistemas, garanto-lhe Senhor Ministro que esta minha incapacidade de ver os seus gigantes não é má vontade.

Talvez perceba melhor a minha dificuldade se conhecer esta história.

Sou presidente de uma recente e pequena associação de conservação da natureza que é natural que não conheça, a Montis. Centramo-nos em levar gestão aos terrenos marginais onde faz falta para aumentar a biodiversidade e a valorizar.

Recorremos ao crowdfunding, como agora é moderno chamar às subscrições públicas, para comprar uns poucos hectares de carvalhal em regeneração e também tentamos aumentar a área gerida por nós com recurso a acordos com proprietários.

Foi assim que chegámos à gestão de 100 hectares de um baldio que arde mais ou menos de dez em dez anos e é hoje um giestal alto, pronto para o próximo fogo e sem grande interesse social, ambiental e económico. É uma área em co-gestão com o ICNF que, tirando a retirada de madeira do último fogo, há mais ou menos dez anos, não faz ali qualquer acção de gestão.

Num acordo envolvendo empresas eólicas, a Junta de Freguesia, os compartes, definimos um conjunto de objectivos a atingir no longo prazo com a nossa gestão, responsabilizando-nos por mobilizar os meios necessários para isso. Porque queremos envolver as pessoas comuns na gestão concreta daquela área em que há mais de dez anos ninguém quer investir, recorremos de novo a uma campanha de crowdfunding para obter os recursos necessários para começar a recuperação da área e chegar, um dia, a ter alguns carvalhais maduros que possam, através do ensombramento, controlar os matos que alimentam os fogos de Verão.

Foi nesse contexto que programámos, e executámos recentemente, um fogo controlado de cerca de vinte hectares.

Mas não foi tarefa fácil porque o ICNF levantou objecções, sem qualquer fundamento sólido e, mais que isso, exigiu que a sua posição de co-gestor (embora absentista) fosse bem vincada incluindo o estabelecimento de um novo protocolo que assegurasse uma palavra final ao ICNF na gestão do baldio que deixou ao abandono.

Perdemos meses nestas faenas, mas finalmente conseguimos marcar a data para queima, para a qual convidámos o ICNF. No último momento o ICNF explicou que não estaria presente porque não havia viaturas para a deslocação, reiterando as obrigações legais a que estávamos sujeitos para poder fazer a queima.

Pagámos a licença à câmara, aliás duas vezes, porque como choveu dois dias antes tivemos de adiar a queima e pagar nova licença, pagamos o trabalho dos sapadores na abertura das faixas de contenção, apesar de estarmos a levar gestão a uma área de co-gestão do ICNF, pagamos aos técnicos de fogo controlado (dos melhores do país, reconhecidamente), pagamos aos bombeiros para assistir e assegurar que o fogo não fugia do programado.

Mas mais que tudo, enquanto andávamos nestas touradas para queimar meros vinte hectares cumprindo escrupulosamente a regulamentação, o que implicou uma despesa de cerca de 2 500 euros cedidos pelos nossos sócios e doadores para levar gestão a áreas que o Estado mantém ao abandono, executando num dia uma área de gestão de combustíveis que é metade da que é feita, em média, por uma equipa de sapadores num ano, ardiam alegremente (e bem), mais de 3 500 hectares em fogos pastoris de Inverno que ninguém controla, ninguém fiscaliza e a sua reforma, tal como os serviços que tutela, finge que não existem.

Pois bem, a sua reforma visa simplificar tudo isto, parte do princípio de que os agentes económicos e sociais estão de boa-fé e prestam serviços ambientais que ninguém remunera mas que a todos beneficia e que é com esses agentes de gestão no terreno que poderemos chegar a algum lado?

Não, a sua reforma faz um plano nacional de fogo controlado que de controlado só tem o facto de todo o dinheiro ter de passar pelo ICNF antes de chegar a quem gere de facto o território (na opinião do ICNF), no meio de um labirinto de regras e prioridades que só por acaso têm qualquer relação com a realidade.

E quem fala do fogo controlado, poderia falar das plantações: está mesmo convencido de que algum pequeno proprietário vai ligar alguma coisa às regras sobre plantação de eucaliptos? Esta minha costela de Sancho Pança obriga-me a dizer-lhe que vão ligar tanto ao que escrever no diário da república como os pastores ligam à regulamentação de fogos controlados, e que o único efeito destas regulamentações malucas é aumentar a desvantagem dos agentes que gerem os seus terrenos com as melhores técnicas disponíveis e cumprindo as regras que existem.

É por isso, Senhor Ministro, que lamento dizer-lhe que onde vê gigantes eu só vejo moinhos e que o único efeito concreto da sua reforma, para além de satisfazer as corporações do costume, é beneficiar a fileira do eucalipto através do aumento da procura de papel provocada pelas resmas de documentos associadas.

O resto já sabemos: se o ano correr de feição e a meteorologia ajudar, lá o veremos a dizer que a reforma está a ser um êxito e a ter os primeiros resultados, e se, pelo contrário, a meteorologia trouxer uma grande área ardida e um grande alarme social com os fogos de Verão, lá o veremos dizer que ninguém estaria à espera de resultados imediatos na resolução de problemas que ninguém quis resolver nas últimas décadas.

As reformas florestais são mais ou menos como as telenovelas: os actores mudam mas o guião é basicamente o mesmo e o fim é o que se adivinhava desde o primeiro episódio.

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