Um outro Risi

Cinco propostas melancólicas para completar o ciclo que a Festa do Cinema Italiano organiza em torno de um nome da "comédia à italiana".

Un amore a Roma, 1960 DR
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Un amore a Roma, 1960 DR

Dino Risi (1916-2008) dizia-se melancólico e crepuscular — isso está entranhado na sua obra, embora o ciclo de dez filmes que a Festa do Cinema Italiano organiza a partir de quinta-feira, dia 6, em colaboração com a Cinemateca Portuguesa, não nos “fale” disso. É esse outro Risi, por isso, que aqui se propõe.

A haver um título cuja ausência é de lamentar na programação, ele é Il Giovedi, de 1964. É uma obra-prima. Alberto Sordi, Vittorio Gassman, Ugo Tognazzi, as suas correrias e gestos, o desespero dos falhados, as máscaras: são esses os "monstros" que se exibem neste ciclo. Em Il Giovedi não há nada disso, eles não estão lá, e Walter Chiari está despido de histrionismos. É o retrato de um perdedor do “sonho italiano” sem capacidade, sequer, para disfarçar a derrota, e é das coisas mais pungentes de que o cinema italiano foi capaz — na verdade, é um exemplo daquilo que o cinema já foi capaz como arte de falar das coisas materiais da vida e dos sentimentos. Numa "quinta-feira" a personagem de Walter Chiari vai passar o dia com o filho. Que, percebe-se logo (Il Giovedi é implacável a dar os sinais da humilhação social), vive num mundo a que o pai nunca terá acesso. Em A Ultrapassagem (1962, abertura do ciclo, dia 6) teremos Vittorio Gassman ao volante e Jean-Louis Trintignant no lugar do morto, os dois à velocidade do boom económico italiano. Com Il Giovedi, com um pai e um filho em viagem de aproximação e descoberta mútuas, num carro também, teríamos o contraponto: um filme desacelerado pela subtil arte de Risi, não há para onde escapar.

Há morbidez a trabalhar no cinema do realizador. O expoente máximo é Fantasma de Amor (1981). Marcello Mastroianni reencontra uma antiga paixão (Romy Schneider) que, literalmente, veio dos mortos. Foi o antepenúltimo filme da magoada Schneider - e em algumas sequências Risi parece ter registado, o que é muito perturbante, parece um filme de terror, a invasão da depressão e da dor a progredir assustadoramente por um rosto. Como se o devorasse.

O encontro entre Ugo Tognazzi e Ornella Muti faz-se à sombra de O Anjo Azul (Josef von Sternberg, 1931): a personagem de Tognazzi, estrela de vaudeville na reforma, tem consciência de que pode estar a continuar um cliché, ao perder-se de amores pela personagem de Ornella Muti (empregada na casa de repouso para artistas). Sabe-o, mas, é essa a respiração tragicómica do filme, é incapaz de o evitar. É pungente o retrato de um mundo terminal que Risi pinta - um mundo onde talvez Tognazzi se pudesse encontrar com o Vittorio Gassman cego e amputado de Perfume de Mulher.

Em 1959, o cineasta fazia um dos apogeus mais vertiginosos da aliança entre filmes e barbárie, cinema e delito, classe média italiana e vigarice: O Castigador (1963). Teria feito sentido programá-lo, porque ajuda a falar por toda a "comédia à italiana". Seria um suplemento de explicitação desse cinema de Risi nos anos, e sobre os anos, do boom italiano: Gassman a libertar uma energia perigosa - é um actor, e por mais que se disfarce de respeitabilidade, o filme, arte vígara, está sempre a reconduzi-lo ao seu lugar. Surpreendente seria, até, experimentar a passagem para o filme que Risi fez a seguir, no ano de 1960, Un Amore a Roma. É a história dos sucessivos desastres de um amor e de um par, uma aspirante a actriz e um intelectual razoavelmente mórbido na Roma da Dolce Vita. O filme tem o mesmo argumentista do filme de Fellini, Ennio Flaiano, que seria também um dos argumentistas de A Noite, de Michelangelo Antonioni, e há de facto uma linhagem nas personagens masculinas desses filmes, na sua impotência, na sua passividade, na sua malaise. A sequência final deste Un Amore a Roma doentio que se intrometeu, sem se preocupar com descendências, entre comédias é arrasadora. Vasco Câmara

<i>Un amore a Roma</i>, 1960: o amor mórbido entre um aristocrata intelectual e uma aspirante a actriz na Roma da <i>Dolce Vita</i>
Un amore a Roma, 1960: o amor mórbido entre um aristocrata intelectual e uma aspirante a actriz na Roma da Dolce Vita DR
<i>Un amore a Roma</i> - 1960
Un amore a Roma - 1960 DR
<i>O Castigador</i> (<i>Il Mattatore</i>) - 1960
O Castigador (Il Mattatore) - 1960 DR
<i>O Castigador</i> (<i>Il Mattatore</i>) - 1960: o encontro (natural?) entre o mundo da tragicomédia e o mundo da vigarice; Gassman é o aspirante a actor que se constrói e desfaz pela máscara
O Castigador (Il Mattatore) - 1960: o encontro (natural?) entre o mundo da tragicomédia e o mundo da vigarice; Gassman é o aspirante a actor que se constrói e desfaz pela máscara DR
<i>Dia de Férias </i> (<i>Il Giovedi</i>) - 1964
Dia de Férias (Il Giovedi) - 1964 DR
<i>Dia de Férias </i> (<i>Il Giovedi</i>) - 1964: o encontro, numa "quinta-feira", entre um miúdo, criado pela mãe rica e pela governanta, e o pai, um dos esquecidos do <i>boom</i> italiano
Dia de Férias (Il Giovedi) - 1964: o encontro, numa "quinta-feira", entre um miúdo, criado pela mãe rica e pela governanta, e o pai, um dos esquecidos do boom italiano Francesco Alessi/Cinecittà Luce - Cineteca Nazionale
<i>Dia de Férias </i> (<i>Il Giovedi</i>) - 1964
Dia de Férias (Il Giovedi) - 1964 DR
<i>Nostalgia do Amor</i> (<i>Primo Amore</i> - 1978
Nostalgia do Amor (Primo Amore - 1978 DR
<i>Nostalgia do Amor</i> (<i>Primo Amore</i> - 1978
Nostalgia do Amor (Primo Amore - 1978 DR
<i>Nostalgia do Amor</i> (<i>Primo Amore</i> - 1978: o encontro entre uma estrela de <i>vaudeville</i> na reforma (Ugo Tognazzi) e a enfermeira (Ornella Muti) da casa de repouso em que se instala
Nostalgia do Amor (Primo Amore - 1978: o encontro entre uma estrela de vaudeville na reforma (Ugo Tognazzi) e a enfermeira (Ornella Muti) da casa de repouso em que se instala DR
<i>Fantasma de Amor </i> (<i>Fantasma d'amore</i>) - 1981
Fantasma de Amor (Fantasma d'amore) - 1981 DR
<i>Fantasma de Amor </i> (<i>Fantasma d'amore</i>) - 1981: Marcello Mastroianni encontra, num autocarro, Romy Schneider, um antigo amor; a personagem de Schneider já teria morrido anos antes
Fantasma de Amor (Fantasma d'amore) - 1981: Marcello Mastroianni encontra, num autocarro, Romy Schneider, um antigo amor; a personagem de Schneider já teria morrido anos antes DR
<i>Fantasma de Amor </i> (<i>Fantasma d'amore</i>) - 1981
Fantasma de Amor (Fantasma d'amore) - 1981 DR
<i>Fantasma de Amor </i> (<i>Fantasma d'amore</i>) - 1981
Fantasma de Amor (Fantasma d'amore) - 1981 DR