Hepatite A, os erros do passado no presente

O ECDC alertou as autoridades europeias para este surto em Agosto de 2016. Os primeiros casos “em excesso” começaram a ser notificados em Dezembro. A DGS nada fez em todo este tempo.

Nova Iorque, Julho de 1981. Primeira notícia sobre o VIH/sida publicada pelo The New York Times: “Médicos em Nova Iorque e na Califórnia diagnosticaram uma rara e rapidamente fatal forma de cancro entre 41 homens homossexuais. […] De acordo com o Dr. Friedman-Kien, a maioria dos casos envolveu homens homossexuais que tinham muitos encontros sexuais com múltiplos parceiros, chegando aos dez parceiros por noite, quatro noites por semana. […] O Dr. Curran afirmou que não existirá perigo de contágio para não-homossexuais — ‘a melhor evidência’, disse o médico, ‘é que não existem casos reportados fora da comunidade homossexual ou em mulheres’.”

Lisboa, Março de 2017, 36 anos depois. Notícia do PÚBLICO: “Casos de hepatite A afectam sobretudo homens com 30 anos. […] A maior parte dos casos já confirmados é de homens que fazem sexo com homens. O principal modo de transmissão desta doença é por via fecal-oral, e o director-geral da Saúde explica que em causa poderão estar ‘práticas de comportamento de sexo oral com mais risco’, nomeadamente quando o sexo oral permite ‘a transmissão do vírus eliminado de forma anal, rectal’, em contexto de práticas sexuais prolongadas com múltiplos parceiros.”

Relatório sobre a situação da sida em Portugal, 1986, Instituto Nacional Ricardo Jorge: “A quase totalidade dos casos verificou-se em indivíduos do sexo masculino e, grosso modo, um em cada dois doentes tem entre 20 e 40 anos de idade. Os elementos disponíveis, de ordem sociológica, fazem crer ser reduzida, entre nós, a população homossexual masculina […]. Entendemos, assim, que os dados epidemiológicos de base obtidos nos EUA e utilizados para esboçar o quadro evolutivo da epidemia — como o número médio de contactos sexuais por homossexual, o número de indivíduos infectados e a percentagem de população em risco — não são reprodutíveis para aplicação directa entre nós.”

Lisboa, Março de 2017, 31 anos depois, norma da Direcção-Geral da Saúde sobre o surto de hepatite A: “Pessoas em maior risco de adquirir hepatite A: Homens que fazem sexo com homens (HSH) com um ou mais dos seguintes comportamentos: sexo anal (com ou sem preservativo); sexo oro-anal; sexo anónimo com múltiplos parceiros; sexo praticado em saunas e clubes, entre outros locais; encontros sexuais combinados através de aplicações tecnológicas (apps).”

Sobre o “cancro dos homossexuais” como era conhecida a sida em 1981, já conhecemos o desenrolar da história: de um punhado de “homossexuais promíscuos” a 70 milhões de pessoas em todo o mundo, das quais 40 milhões são mulheres. Será certamente diferente com a hepatite A, pelo facto de esta ser uma infecção muito mais benigna. Mas não aprendemos nada em quase 40 anos de experiência com o VIH?

No surto de hepatite A, continuamos, como há 40 anos em relação à sida, à procura da “culpa”, à procura dos indivíduos “estranhos”, com modos de vida “diferentes”, de comportamentos sexuais “esquisitos”. Isolamos esses “pecadores” e descansamos as nossas “consciências”. Homens que têm sexo com homens, que o fazem “anonimamente” e usam “aplicações tecnológicas”. Entretanto, os vírus, que não têm qualquer tipo de preconceitos, proliferam alegremente nos mais incautos e insuspeitos.

O Centro Europeu de Vigilância Epidemiológica ECDC alertou as autoridades europeias para este surto em Agosto de 2016. Os primeiros casos “em excesso” começaram a ser notificados em Dezembro de 2016. A DGS nada fez em todo este tempo e não acautelou o stock de vacinas, agora em ruptura. No entanto, no mesmo dia em que saíram as primeiras notícias, a DGS conseguiu reunir uma série de peritos de urgência e proclamar “intenções”. Esperava-se mais e melhor da DGS. Médico de saúde sexual de homens que têm sexo com homens

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