“Se não houvesse nada que custasse, o que tinha eu para oferecer a Deus?”

Rita é irmã clarissa de clausura e Bernardo ex-seminarista. São amigos e apesar de as suas vidas seguirem diferentes rumos, une-os a juventude e o amor a Deus, que "desarruma muito as coisas".

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Daniel Rocha
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Rita está no Mosteiro do Imaculado Coração de Maria Rui Gaudêncio
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Bernardo, ex-seminarista, estuda agora Engenharia DR

Nos sinos da Basílica da Estrela, em Lisboa, soam as 11 badaladas. Para as moradoras do número 15 da Rua da Estrela, o dia começou às 7h da manhã, vão quatro horas, com as Laudes. “Logo pela manhã, damos graças a Deus pelo dia que começa”, explica a Irmã Rita Maria de Assis, sobre a oração matinal que vem dos primeiros tempos do cristianismo.

Situado em plena malha urbana, o Mosteiro do Imaculado Coração de Maria passa despercebido. Apesar de todo o rebuliço da zona, dentro do mosteiro os ruídos mundanos não entram. Aqui, cinco irmãs vivem em regime de clausura e contemplação. Fizeram um voto religioso que as obriga a nunca mais sair do mosteiro. “Só saímos em situações de manifesta necessidade”, explica a irmã Rita Maria.

Rita é a mais nova. Tem 24 anos. Entrou para o mosteiro aos 21, pronta a entregar a sua vida a Deus, da forma mais radical - a clausura. Nasceu Ana Rita de Assis Libório. Após a tomada do hábito religioso recebeu o nome de Rita Maria de Assis. “Há quem mude o nome todo. Eu apenas acrescentei Maria.” A mudança de nome deve-se à sua nova missão: “Na Bíblia, Jesus diz: ‘Dar-te-ei um nome novo.’ Nome novo significa uma missão nova.” Manteve Assis em homenagem a Clara de Assis, a padroeira da ordem monástica à qual agora pertence.

Marca o início do seu caminho na fé num momento bem definido. “Começou no dia 31 de Outubro de 1992, no dia em que os meus pais me baptizaram e deram o ‘sim’ a Deus por mim”. A partir daí, conta que o que aconteceu foi natural: “Fui à catequese, fiz a primeira comunhão, o crisma e também fui catequista na paróquia da freguesia.”

Ao longo dos anos, as etapas sucederam-se. Admite que “no início, se calhar ia à missa e à catequese porque os pais também iam” até que houve um momento em que essas actividades adquiriram um sentido mais profundo na sua vida. “Eu ia para encontrar o amor de Deus, que se oferecia a nós na eucaristia. E na catequese Deus dava-se a conhecer através do que o catequista nos ia ensinando.”

Também na vida de Bernardo Gomes, ex-seminarista de 21 anos, a fé foi crescendo. “Ir à missa sempre foi muito normal na minha vida, comecei a levar isto a sério desde muito novo.”

Aos 13 anos participou num campanário, um campo vocacional para rapazes. “Foi uma semana cheia de aventuras e brincadeiras, mas que não deixava de ter essa parte exigente que nos ia dando um toque sobre o que o Deus nos pede.” No final do encontro, ao verem a sua dedicação, os sacerdotes convidaram-no a entrar no pré-seminário. Aceitou. Foi de novo devido à sua entrega que no 9.º ano recebeu o convite para entrar no seminário menor. “Era muito novo, não sabia bem o que isso era e nem estava preparado. Disse logo que não.” No ano seguinte, o convite voltou e a recusa também. “Achei que tinha que caminhar mais um pouco e ainda não estava pronto.” Ao terminar o secundário, Bernardo colocou de lado os ‘ses’, esqueceu o medo e entrou no seminário de São José de Caparide, no Estoril. Tinha 18 anos. Os pais não questionaram a decisão.

Rita e Bernardo conhecem-se desde o tempo das actividades na paróquia. Ela acompanhou a entrada dele no seminário e ele assistiu à entrada dela no mosteiro. "Sim - diz Bernardo -, podemos dizer que somos amigos."

O chamamento

Rita cedo se deparou com a questão do chamamento. Durante o secundário, começou a questionar qual o sentido da sua vida e de que forma a podia oferecer a Deus. “‘Senhor, que queres que faça?’”, era a questão que a inquietava. Com o acompanhamento espiritual do pároco, as dúvidas desvaneceram-se nesses anos: “Dentro do meu coração já estava a decisão de uma vida consagrada a Deus.” Mas a vida trocou-lhe as voltas. Rita acabou por se matricular na Universidade Nova de Lisboa, no curso de Economia.

Bernardo, durante muito tempo, também se sentiu atormentado pela questão do chamamento. “Como é que eu sei que o Senhor me chama? Não é um clique, não é nada visível. É preciso confiar na Igreja.” E o que é confiar na Igreja? “É confiar nos padres que nos acompanham e naquilo que nos dizem. E depois não é repentino, há caminho”, explica. Para tentar compreender as suas emoções, Bernardo tinha também acompanhamento espiritual todos os meses. Eram momentos em que expunha as dúvidas. “Conversávamos sobre a vocação e o chamamento. Tinha um acompanhamento muito humano, ao mesmo tempo via o olhar da Igreja e de Deus sobre o assunto.” Através deste acompanhamento, explica, “Deus revela-se aos poucos.”

No 12.º ano Bernardo não conseguiu ignorar a questão: “Deus continuou a querer-me no seminário e eu pensei ‘se Ele me está aqui a querer há tanto tempo, e eu já caminhei tanto e dei tantas respostas, se calhar, está na altura’.”

Rita conheceu o mosteiro ao qual agora pertence quando estudava na universidade. “Fica perto e descobri que aqui havia missa às 7h30 da manhã. Era uma boa hora.” Ia quase todos os dias à missa no convento. “Foram três anos de uma vida universitária muito normal, com Erasmus em Inglaterra durante um semestre.”

O tempo passado fora do país, longe de tudo o que lhe era familiar, revelou-se fulcral para desatar certos nós: “Conheci-me a mim própria e tive mais tempo para dedicar ao encontro com Deus.” Durante esse período descobriu o valor da oração. “Apesar da distância física, porque os meus amigos e a família estavam em Portugal, senti através da oração um elo muito forte que nos unia e sustentava.”

Ao regressar, a aproximação ao mosteiro aumentou. “Comecei a perceber a importância da vida contemplativa, e que as irmãs por detrás das paredes deste mosteiro fazem muito”, explica Rita. Quando a decisão de entrar no Imaculado Coração de Maria “amadureceu foi com a madre do mosteiro" que procurou "falar e pedir ajuda para discernir” Rita saiu quase directamente da universidade para o mosteiro. A escolha não surpreendeu os mais próximos. “Olharam para o meu percurso e perceberam que talvez a minha opção de vida fosse consagrada a Deus.”

O choque aconteceu pela opção de clausura. “Eu tinha uma vida muito activa, muito missionária. Ninguém esperava.” Foi muito questionada. “Compreende-se mais facilmente uma vida consagrada a Deus missionária, do que em clausura.” Tentaram demovê-la. Mas Rita manteve-se firme na decisão que tomara. “É um desafio à fé, a vida contemplativa em clausura só é possível compreender à luz da fé.”

O primeiro ano passado no mosteiro é o ano de postulantado. “Há mais contacto com o exterior, para que o corte não seja tão repentino.” Em contrapartida, o segundo ano, o de noviciado, “é um ano de retiro, em que há menos contacto com o mundo exterior”. É um tempo de discernimento. “É como um tempo de namoro em que nos estamos a conhecer e estamos a conhecer também a vontade de Deus”, explica Rita. As saudades revelam-se o maior desafio. Mas são também uma prova de amor: “Se não houvesse nada que custasse, o que tinha eu para oferecer a Deus?”, questiona.

Bernardo começou a sua experiência no seminário com o ano de propedêutico, “uma espécie de ano zero, de introdução ao seminário”, que se revelou cheio de actividades: “Foi um ano de muita experiência humana, de conhecer, de contactar.” Viveu intensamente o tempo que lá passou. Participava diariamente na eucaristia. Havia um tempo dedicado à oração. Tinha aulas todos os dias. Participou em acções de voluntariado. “O seminário é um tempo de aprender muita coisa, mesmo em ambiente de conversa uns com os outros.”

O frenesim vivido no propedêutico dispersou-o e, ao desacelerar o ritmo, no início do primeiro semestre, começou a colocar em causa a vocação. “Gostava muito de ser seminarista, mas não ia ser seminarista para sempre. Tinha a questão de ser padre…” Ser padre não o assustava, mas não sabia até que ponto “era algo que se encaixava” na sua vida.

Após muita reflexão, Bernardo percebeu que aquele não era o caminho, “pelo menos naquela altura”. Abandonou o seminário. “Foi a altura da minha vida em que mais chorei, custou-me muito.” A sua decisão causou surpresa aos pais. “Eles viviam o seminário comigo, não estavam à espera.”

Jovens à procura

Estar no mosteiro permite a Rita tocar a vida dos jovens “que aqui vêm, rezam, procuram e se encontram com Deus”. Não acredita que a juventude perdeu a fé em Deus. Admite que os jovens crentes “são mais silenciosos do que os outros que não querem procurar e que negam a existência de Deus". "Não é algo tão noticiado nem tão badalado como tudo o resto que acontece de menos belo."

Nos tempos de faculdade, a atitude de devoção a Deus tocou outros estudantes. “A minha universidade tem uma igreja anexa, a igreja de Campolide, mesmo colada ao edifício de Economia. Estava aberta e quase sempre vazia.” Propôs-se diariamente a ir para lá rezar, nos intervalos de almoço ou entre as aulas. Aos poucos, alguns colegas seguiram-lhe as pisadas. “Muitas coisas bonitas aconteceram no ambiente da faculdade. Um colega pediu para ser baptizado e uma colega quis ser crismada porque o amigo ia ser baptizado e fora convidada para madrinha”, relembra.

Para Bernardo, aos jovens falta o compromisso com Deus. “Estão muito agarrados ao que é mais fácil.” Maria José Reis, madre superiora do Mosteiro do Imaculado Coração de Maria, concorda. “O jovem prefere viver adormecido porque isso implica menos mudanças na sua forma de ser, falar e estar”, diz. Ora o Papa Francisco pede o contrário: “Está a ajudar os jovens a despertarem. Fala de uma forma muito humana e aponta o caminho segundo o Evangelho de Jesus Cristo”, explica.

O que a sociedade normalmente oferece, diz Maria José Reis, desvia os jovens da fé. São “coisas bonitas mas de satisfação momentânea. Tudo isso se apaga”, diz. As inquietações surgem depois: “São muitos os jovens que aqui vêm pedir conselhos e não apenas os que pretendem seguir a vida religiosa.”

Não abundam dados actualizados sobre as vocações. Os que existem apontam para uma ligeira subida nos últimos anos, depois de uma quebra muito acentuada nos anos de 1990 e princípio de 2000. Segundo a Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal (CIRP), atingiu-se o número mais baixo de postulantes femininas em 2004 (21) e masculinos em 2006 (50) e de noviças (37) e noviços (32) em 2005. Em 2011, último ano para o qual tem dados globais, havia 47 postulantes mulheres e 69 homens e 47 noviças e 42 noviços. A frequência de seminários maiores (último período de formação e posterior ao noviciado, apenas para rapazes) acompanha a tendência: de 451 em 2009 para 565 em 2014, segundo dados da Conferência Episcopal Portuguesa. Mas a falta de vocações persiste e o Papa Francisco não esconde que “é um problema”.

A visão da Igreja católica sobre questões mais fracturantes pode, aos olhos de Bernardo, contribuir para o desapego dos jovens: “A Igreja acredita que é importante viver a vida da maneira que Jesus nos deu e apresentou. E às vezes os jovens pensam que a Igreja é antiquada.” Não será o único obstáculo. Temas críticos como a pedofilia e a corrupção também não ajudam.

“A Igreja são as pessoas e se alguém está a aproveitar a Igreja para fazer coisas erradas, essas situações devem ser corrigidas, as pessoas devem ser punidas, como prevê a lei.” São situações, acrescenta, que “nos deixam profundamente tristes, mas com a certeza de que se a Igreja é de Deus, e não apenas dos homens, então há salvação”. Por isso, vê a Igreja como “um hospital de campanha, onde há gente com muitas feridas”.

Antes de entrar na vida monástica, Rita sentiu-se fora do lugar. Aos olhos da sociedade tinha tudo o que uma rapariga da sua idade desejava. “Era amada, era feliz.” Mas sentia faltar qualquer coisa. “Eu era uma peça de um puzzle por encaixar no lugar certo. E só aí é que me sentiria completa”. Dentro das paredes do mosteiro “o mundo é maior”. Não se sente presa, muito pelo contrário. “A nossa clausura não nos prende. Liberta-nos para um amor maior. Às vezes quem nos visita está mais preso que nós.” Casar e ter filhos eram sonhos, mas a entrada no mosteiro não pôs termo a esse sonho. Pelo contrário: “O meu desejo de ser mãe não foi cortado por Deus ao chamar-me à vida consagrada. Recriou-me esse sonho. Estar no mosteiro permite ser mãe de muitos, de todos aqueles que estão confiados à oração.”

Já passaram dois anos desde que Bernardo deixou o seminário. Não se arrepende da decisão tomada. “Foi uma decisão consciente. E depois Deus também me confirmou isso, colocando outras coisas no meu caminho.” Hoje, estuda Engenharia Informática no ISCTE. Está no segundo ano de licenciatura. Mantém um papel activo na paróquia: “Vou à missa regularmente, integro as Equipas de Nossa Senhora, dou catequese, faço parte do grupo de jovens.” A sua relação pessoal com Deus não só não ficou abalada como “saiu fortalecida". "É preciso confiar e saber que Ele não vai desistir de nós.”

Reentrar no seminário é uma hipótese que não descarta. “Estou sempre disposto para o que Deus me vai chamando”, sem decisões de ânimo leve. Tudo depende da altura da vida em que estiver: “É preciso ter o coração aberto e disponível. Se for chamado mais tarde para o seminário, irei pensar. Deus desarruma muito as coisas.” Acabar a faculdade é o seu plano mais imediato. O resto “logo se vê”.

Em Janeiro, Rita terminou o noviciado. Fez os votos temporários de castidade, pobreza e obediência. Os votos perpétuos acontecerão dentro de três a seis anos. “Estou feliz e sinto-me em paz.”

Texto editado por Lurdes Ferreira

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