Empatia ou apropriação cultural? Obra inspirada em foto de jovem negro morto por brancos reacende debate nos EUA

A exposição em Nova Iorque de um quadro inspirado nas fotografias do adolescente negro Emmett Till, barbaramente assassinado em 1955, reacendeu o debate sobre apropriação cultural.

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Familiares de Emmett Till assinalam os 60 anos da morte do jovem no sítio onde terá assobiada a uma mulher branca Getty Images

Foi um dos mais terríveis casos de racismo do século XX. Emmett Till era um rapaz negro de 14 anos, natural de Chicago, que em 1955 foi brutalmente assassinado por dois homens brancos, por ter assobiado à mulher de um deles, também branca, numa mercearia no Mississípi, onde se encontrava de férias.

Dias depois de ter sido levado de casa do tio, o corpo do adolescente foi encontrado por pescadores, no rio Tallahatchie, com uma peça de uma engrenagem de fiação de algodão presa ao pescoço com arame farpado, a cabeça desfeita e um olho arrancado.

O assassinato brutal ficou conhecido porque a mãe de Emmett, Mamie Till-Mobley, recusou fazer o velório de caixão fechado, porque “queria que o mundo visse o que aqueles homens tinham feito ao seu filho”. Os homens eram irmãos e apresentaram-se em tribunal com os filhos, ainda pequenos, ao colo. A mulher, de 21 anos, admitiu décadas mais tarde que o seu testemunho em tribunal não correspondia à verdade. Na altura, disse que o rapaz a assediara e agarrara. Os dois homens acabaram por ser absolvidos, embora numa entrevista paga pela revista Look, tenham admitido que mataram o adolescente.

As fotografias do corpo mutilado do rapaz correram os EUA e o mundo, e tornaram-se um catalisador para o movimento norte-americano pelos direitos civis. Rosa Parks chegou a afirmar que estava a pensar no rapaz quando, em Dezembro de 1955, se recusou a ceder o seu lugar a um homem branco num autocarro em Montgomery, Alabama.

Open Casket deixa artistas divididos

A morte de Emmett Till inspirou várias obras artísticas ao longo dos anos, com a peça Blues for Mister Charlie, de James Baldwin, e a canção Ballad of Emmett Till, de Bob Dylan. Mais de 60 anos depois, numa nova realidade marcada pela eleição de Donald Trump como sucessor do primeiro Presidente negro dos EUA, com a ascensão da alt-right racista e em plena luta do movimento Black Lives Matter, estas imagens voltam a despertar o debate sobre o racismo nos EUA.

A polémica surgiu com a exposição da obra Open Casket (2016), um quadro da artista Dana Schutz com base nas fotografias de Emmett Till, na bienal do Museu Whitney de Arte Americana, em Nova Iorque.

Dana Schutz, 40 anos, contou ao site Artnet que pintou o quadro no Verão de 2016, depois de protestos por todo o país na sequência de vários casos de homens negros desarmados que foram mortos por polícias nos EUA.

A pintura, no entanto, está a deixar a comunidade artística de Nova Iorque dividida. Há quem acuse Schutz de apropriação cultural, sublinhando o facto de se tratar de uma artista branca a apresentar a sua representação subjectiva de uma imagem icónica da luta dos afro-americanos pelos direitos civis.

Quando a exposição foi inaugurada, o artista negro Parker Bright fez um protesto no museu, colocando-se à frente do quadro com uma t-shirt onde se lia “Black death spectacle” (espectáculo de morte negra, em tradução livre), descreve o New York Times. “Muitas pessoas na comunidade de artistas negros estão irritados com esta obra. Eu queria confrontar as pessoas com um corpo negro vivo, a respirar”, afirmou Parker Bright, citado pelo jornal The Guardian.

A britânica Hannah Black, que publicou uma carta aberta subscrita por vários artistas negros, exige mesmo que a obra “seja destruída e não seja aceite em nenhum mercado ou museu”. A jovem artista afirma que “os artistas não-negros que queiram sinceramente ressaltar a natureza vergonhosa da violência branca deveriam, antes de mais, deixar de tratar a dor dos negros como matéria-prima”.

Censura?

No contexto de ameaças de cortes nos apoios à cultura e às artes e da escalada de legislação que poderá limitar a liberdade de expressão e o direito de manifestação em vários estados norte-americanos, há quem veja esta exigência como um caso de censura, considerando inadmissível destruir a obra.

O Guardian destaca as reacções de artistas como o escritor Gary Indiana, que afirma que a carta é repleta de “clichés” e “demagogia”, e a pintora Kara Walker, que recorda que as obras de arte perduram além da controvérsia que geram.

Em comunicado, Dana Schutz já veio defender-se. “Não sei o que é ser negra na América, mas sei o que é ser mãe. Emmett era o único filho de Mamie Till. O pensamento de qualquer coisa a acontecer à nossa criança vai além da compreensão”, referiu a artista, citada pela revista New Republic.

Christopher Benson, que escreveu a obra Death of Innocence: The Story of the Hate Crime That Changed America (2003) em co-autoria com Mamie Till, defendeu esta semana, num artigo de opinião no New York Times, que a mãe de Emmett teria visto a polémica à volta do quadro como uma oportunidade para chamar a atenção para a questão da violência racista. Apesar de reconhecer a apropriação por parte da artista branca, o jornalista acredita que Till-Mobley teria valorizado o espaço aberto para o debate, mas não a censura.

John Jennings, especialista em cultura afro-americana da Universidade da Califórnia, sublinha ao Guardian que “devemos ser cuidadosos com a forma como abordamos o assunto”, já que a “re-mediação” da fotografia ultrapassa as intenções da mãe de Emmett, que no acto corajoso de mostrar o corpo do filho ao mundo marcou a história norte-americana. O historiador sublinha, contudo, que “Schutz tem o direito de criar obras de arte e o quadro não deve ser destruído

Os curadores da exposição no Museu Whitney, que escolheram a obra devido à “importância desta imagem solene e com tantas consequências na história norte-americana e afro-americana e na história das relações raciais no país”, afirmam que a obra de Schutz vai continuar em exposição.

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