Afinal, nem tudo é mau quando se parte um arcanjo com 250 anos, sedutor e feliz

Restauro da escultura do Arcanjo São Miguel que em Novembro foi derrubada por um visitante do Museu de Arte Antiga segue a bom ritmo. O incidente acabou por trazer muita informação. Figura deverá voltar a ser exposta a 20 de Maio e é bem provável que, nessa altura, já se saiba quem a fez.

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Conceição Ribeiro mostra como deve ser fixado um dos elementos do arcanjo Nuno Ferreira Santos
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Antes da queda, a escultura já apresentava indícios de desgaste nos tornozelos Nuno Ferreira Santos
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Maria João Vilhena e Conceição Ribeiro junto à mesa de trabalho onde inúmeros elementos estão a ser colados Nuno Ferreira Santos
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Imagens saídas das radiografias da peça, feitas no Laboratório José de Figueiredo Nuno Ferreira Santos
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Este restauro não apresenta dificuldades de maior à equipa do museu Nuno Ferreira Santos
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Em caso de queda, os dedos das figuras são sempre muito vulneráveis Nuno Ferreira Santos
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Limalhas que se encontravam no interior da figura - o artista escavou-a por dentro para que fosse mais estável Nuno Ferreira Santos
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O rosto não foi afectado pela queda Nuno Ferreira Santos

Não é preciso ser-se um optimista para chegar à conclusão de que o incidente que no ano passado danificou uma escultura barroca do Arcanjo São Miguel no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) também teve um lado bom. Basta entrar numa das salas de trabalho do museu das Janelas Verdes, em Lisboa, e conversar um pouco com a conservadora de escultura, Maria João Vilhena, e com a restauradora Conceição Ribeiro para perceber que, graças aos testes laboratoriais e à investigação documental feita para preparar a reparação desta peça do final do século XVIII, se sabe hoje muito mais sobre este anjo vingador do que se sabia. “Abriu-se uma janela para o interior da peça a que habitualmente não temos acesso”, diz Ribeiro.

É verdade que é sempre terrível quando uma escultura se parte ou fica danificada ("melhor seria que não tivesse acontecido, claro”), mas também é verdade que, neste caso, sem esse incidente não se ficaria a saber como é feita, que métodos usou o artista para fixar as diversas componentes, a que madeiras recorreu ou qual foi o truque que lhe permitiu arriscar colocar todo o peso desta figura com quase dois metros de altura sobre a sua perna esquerda. 

“Quando o anjo caiu ficámos muito assustados porque havia muitos pedaços de madeira no chão, muito pequenos, mas depois percebemos que não era material fracturado, que vinham de dentro da peça. Eram restos do entalhe, limalhas”, explica Conceição Ribeiro, mostrando exemplares deste lixo que o artista deixou dentro da escultura. “Ele escavou-a por dentro para ficar fisicamente mais estável e menos sujeita às variações de temperatura e humidade que depois provocam fendas.”

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Antes de esta técnica e a restante equipa do museu poderem mexer na peça, ela foi submetida a uma série de exames no Laboratório José de Figueiredo, que fica numa das extremas do jardim do MNAA e é o equipamento da Cultura vocacionado para a conservação e restauro. Foi lá que foram feitos os registos – fotografias e radiografias – e as análises que permitem caracterizar ao pormenor a imagem. Algumas estão ainda por concluir, como as que irão discriminar todos os tipos de madeira usados, embora já se tenham identificado cedro e zimbro. 

A madeira, explica Maria João Vilhena, era escolhida consoante o grau de exigência da execução, os pormenores da escultura; as correias que pendem da cintura do anjo, por exemplo, são em cartão, “algo muito inovador e arrojado”. 

O arrojo, aliás, marca esta escultura que terá estado pelo menos um século ou um século e meio ao culto e que chegou ao MNAA em 1922 (era do antigo Colégio de São Patrício, ligado aos jesuítas; hoje corresponde à escola de circo Chapitô), estando exposta desde então.

É sobretudo porque a imagem estava em muito bom estado (foi limpa e consolidada no ano passado) que a queda não causou danos de maior. As zonas mais vulneráveis da peça – o manto, os braços abertos e alguns dos dedos, as asas e as plumas do elmo, que são de encaixe – partiram-se, mas não há nada irreparável.

“É uma peça absolutamente exímia do ponto de vista estrutural, com um jogo de massas, de volumes, incrível”, defende a conservadora-restauradora, falando de um artista que, muito provavelmente, se deixava fascinar pelo equilíbrio e que encontrou um “truque” para poder deixar um dos pés do arcanjo quase no ar: “Ficamos com a sensação de que ele ia descobrindo a peça à medida que a ia fazendo”, diz Conceição Ribeiro, chamando a atenção para o facto de a perna esquerda (direita de quem vê) assentar sobre uma estaca que entra pela nuvem que serve de base à figura, ficando escondida. “Ele deve ter tido um prazer gigantesco a fazer esta escultura.”

Uma peça espectacular

Até Novembro de 2016, altura em que um visitante a derrubou acidentalmente, o Arcanjo São Miguel ocupava um lugar de destaque na sala dedicada ao barroco, nas galerias de pintura e escultura portuguesas que reabriram ao público no Verão, completamente renovadas e com 250 obras. A partir da próxima noite dos museus, a 20 de Maio, o anjo guerreiro regressa ao contacto com o público de Arte Antiga mas não no mesmo lugar. “Estamos a estudar uma solução para o valorizar ainda mais”, diz Vilhena, sem querer avançar pormenores. “Gostávamos que voasse.”

Voar é o que ele merece, dada a leveza e o dinamismo que apresenta, parece defender José Monterroso Teixeira, historiador de arte que tem vindo a dedicar boa parte da sua investigação ao período barroco. “Esta é uma peça espectacular, festiva, ostensiva, até”, diz, salientando que se reconhece nela uma “matriz berniniana” (por referência ao nome maior da escultura barroca italiana, Gian Lorenzo Bernini), amplamente difundida pela Europa, “ainda que Bernini [1598-1680] estivesse já muito longe no passado”.

O movimento da figura, com o manto a projectar-se, as asas erguidas e um dos pés praticamente no ar, mostra, acrescenta o historiador, que esta é uma peça “artisticamente muito arrojada, hiperbólica, eufórica”, a que se alia uma “enorme qualidade de execução”. Diz ainda Monterroso Teixeira que esculturas “insinuantes” e “sedutoras” como este arcanjo serviam um propósito catequético muito específico – “com esta imagem de um dos heróis de Deus, feita de forma a perturbar quem olha, passa-se a ideia de uma igreja triunfante”.

Tal como Monterroso Teixeira, Maria João Vilhena defende que o acabamento da peça aponta claramente para uma oficina de Lisboa pós-terramoto mas espera que os mais recentes trabalhos de investigação venham a fechar a questão da autoria: “Estamos a estudar várias hipóteses mas acredito que vamos conseguir dizer quem é o seu autor, associá-la directamente a uma mão.”

Não há dúvidas, garante a conservadora de escultura, que se trata de um trabalho de grande qualidade que condensa os valores de cor e de movimento do barroco, neste caso um “barroco feliz”: "Este anjo serve muitíssimo bem a máxima para as imagens devocionais deste período: deleitar, ensinar, comover." O Arcanjo São Miguel, conclui Vilhena, está também muito ligado à espiritualidade jesuítica – é ele o mensageiro de Deus, o chefe da sua milícia, explica, lembrando que, na mão, a figura teria uma balança ou uma lança que há já muito se perdeu. É por causa dessa importância no imaginário religioso que a escultura do MNAA tem um medalhão onde está escrito em latim, curiosamente com erros, “Quem como Deus”.

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