May dá início ao divórcio e faz ameaça velada a Bruxelas

Sugestão de que a cooperação de segurança pode ser afectada caso o Reino Unido saia da UE sem um acordo ensombrou o dia, apesar de todos prometerem negociações “construtivas”.

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Donald Tusk Reuters

O primeiro dos 730 dias da contagem decrescente até ao “Brexit” começou com palavras tranquilizadoras e gestos de conciliação. A primeira-ministra britânica garantiu que o seu país quer continuar a ser “um amigo e aliado próximo” da União Europeia; o presidente do Conselho Europeu assumiu a tristeza por ver chegar este dia mas prometeu que os restantes 27 países vão assumir uma posição “construtiva” nas negociações. Depressa, porém, se instalou um tom crispado no vaivém de declarações entre Londres, Bruxelas e as restantes capitais europeias, perante a sugestão feita por Theresa May de que, se o país não conseguir um acordo de saída satisfatório, isso poderá prejudicar a cooperação em matéria de segurança e combate ao terrorismo.

A carta há muito prometida pelo Governo britânico foi entregue a Donald Tusk às 12h25, pondo simultaneamente fim a nove meses de expectativa e estipulando que, a menos que haja um acordo unânime em contrário, o Reino Unido sairá da UE a 29 de Março de 2019. “Não há qualquer razão para fazer de conta que este é um dia feliz, nem em Bruxelas, nem em Londres”, disse o presidente do Conselho, de semblante carregado e com a missiva de seis páginas na mão. Tusk afirmou que o “Brexit” deixou os restantes 27 “mais determinados e mais unidos”, mas acredita que ninguém vai sair a ganhar. “No essencial, estamos a falar de controlo de danos”, afirmou, explicando que a prioridade da UE será “minimizar os custos para os cidadãos, as empresas e os Estados-membros”.

À mesma hora, em Londres, May anunciava no Parlamento que o país acabava de enveredar por um caminho sem retorno – “O Reino Unido vai deixar a UE. Este é um momento histórico que não pode ter retrocesso”, afirmou, perante os aplausos de muitos dos deputados que há duas semanas a autorizaram a desencadear o processo de saída, cumprindo o mandato saído do referendo de 23 de Junho. Na sua intervenção e no debate que se prolongou por mais de três horas, a líder conservadora repetiu o essencial dos objectivos que traçou no seu discurso de Janeiro –  a saída do mercado único europeu, a ambição de construir uma “parceira profunda e especial” com a UE, com quem quer também negociar um “acordo de livre comércio arrojado e ambicioso”.

A ninguém escapou, contudo, uma importante omissão. Desta vez, May não repetiu o aviso de que “nenhum acordo é melhor do que um mau acordo”, nem deixou subentendido (como tinha feito em Janeiro) que se Bruxelas lhe negar um acordo comercial o Reino Unido poderia adoptar uma política de dumping fiscal que lesaria a economia europeia. Na carta que endereçou a Bruxelas, insiste também que os dois lados devem negociar “de forma construtiva e respeitosa, num espírito de cooperação sincera” e escreveu por duas vezes que Londres não esquecerá as suas “obrigações enquanto Estado-membro que está de saída” – uma referência ao montante que o país poderá ter de desembolsar antes de concluir um acordo com a UE.

Duas notas dissonantes

Na mesma carta, porém, Theresa May insiste que o acordo para a saída deve ser negociado em simultâneo com “os termos da futura relação” entre os dois blocos, ignorando todos os avisos feitos em Bruxelas de que só depois de definidos os aspectos mais cruciais do divórcio se poderá discutir as bases de um acordo comercial ou as condições para um período de transição. Foi isso mesmo que a chanceler alemã, Angela Merkel, fez questão de reafirmar esta quarta-feira, na mesma declaração em que garantiu que os 27 assumirão uma postura “justa” nas negociações. “O Reino Unido e a UE, incluindo a Alemanha, criaram laços apertados ao longo dos anos. Temos de clarificar como podem esses laços ser desatados e temos de lidar com muitos direitos e obrigações associados à pertença à UE. Só depois poderemos falar sobre o futuro das nossas relações.

Mas se este finca-pé já era esperado, um outro fez soar os alarmes europeus assim que a carta começou a ser lida em pormenor. Nela, May liga explicitamente as relações comerciais que quer garantir com a UE após o “Brexit” à cooperação em matéria de segurança. E deixa uma ameaça “implícita e velada, mas muito clara para quem quiser ver”, escreveu o Politico: Se o Reino Unido deixar a UE sem conseguir um acordo satisfatório, não só as trocas comerciais vão passar a reger-se pelas regras da Organização Mundial de Comércio como, “em matéria de segurança, isso significaria que a cooperação na luta contra o crime e o terrorismo sairia enfraquecida”.

“Ela está realmente a dizer que a segurança do nosso país pode ser negociada como moeda de troca nestas negociações?”, indignou-se o deputado trabalhista Stephen Kinnock. Numa conferência conjunta em Bruxelas, o presidente do Parlamento Europeu, Antonio Tajani, e o responsável da instituição para as negociações, Guy Verhofstadt, também não esconderam o desagrado com aquilo a que um diplomata europeu citado pelo Guardian descreveu como “chantagem”. “Acho que a segurança dos nossos cidadãos é demasiado importante para que seja usada como moeda de troca nas negociações”, disse Verhofstadt.

Um porta-voz de Downing Street assegurou que não se trata de uma ameaça, mas da constatação de um facto: “Se sairmos da UE sem qualquer acordo, todos os mecanismos que enquadram a nossa presença na UE vão desaparecer, incluindo os de segurança”. Mas a ministra do Interior britânica, Amber Rudd, viria pôr ainda mais achas na fogueira ao afirmar que se o Reino Unido deixar a Europol, a agência de coordenação policial europeia “da qual é o principal contribuinte”, vai “levar consigo a informação que lhe pertence”.

Sexta-feira, Tusk vai divulgar a proposta com as linhas de orientação da UE para as negociações e na próxima semana o Parlamento Europeu aprova uma resolução em que assume uma postura dura face às exigências britânicas. A posição europeia só ficará fechada, no entanto, dentro de um mês, na cimeira que reunirá os restantes 27. No final da sua conferência de imprensa, Tusk garantiu que os europeus “agirão como um só”. E, numa primeira despedida aos britânicos, rematou: “O que posso dizer mais? Já sentimos a vossa falta. Obrigada e adeus”. 

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