Global Britain? Global Europe?

Hoje a História começou a rodar ao contrário. Não é um pequeno país periférico que abandona a União. É um país que marcou definitivamente a História europeia do século XX.

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1. Este dia 29 de Março ficará na História da integração europeia como aquele que marca o seu mais sério revés político desde a fundação. Desde que foi criada a Comunidade Económica Europeia, cujo tratado fundador acaba de fazer 60 anos, a integração foi sempre uma história de somar e nunca de diminuir. O primeiro alargamento foi exactamente aquele em que o Reino Unido, a Irlanda e a Dinamarca aderiram (1973). Londres, que percebeu depressa que não podia ficar de fora, teve de esperar até que De Gaulle saísse de cena para ver aceite o seu pedido de adesão. O general vetou sempre a sua entrada, olhando-a como um cavalo de Tróia dos americanos, que não cabia na sua Europa do Atlântico aos Urais.

O segundo alargamento é o das novas democracias do Sul: Grécia, Espanha Portugal, libertas das respectivas ditaduras (1982 e 1986). O terceiro foi consequência directa do fim da Guerra Fria, abrindo as portas aos países cujo estatuto de neutralidade foi determinado (directa ou indirectamente) pela divisão da Europa: Áustria, Finlândia e Suécia (1995). Finalmente, a partir de 2004, a Europa abriu as portas aos países europeus que ficaram do lado errado do História no final da II Guerra. Em forma de Big Bang: entraram dez (oito de Leste e duas ilhas a Sul), nessa data, juntando-se mais dois em 2007 e mais um em 2013.

A Europa entrou há muito em fase de fadiga do alargamento. As portas não se fecharam, mas não vão abrir-se nos tempos mais próximos.

2. Hoje, a História começou a rodar ao contrário. Não é um pequeno país periférico que abandona a União, por qualquer razão conjuntural. É um país que marcou definitivamente a História europeia do século XX. Que é a segunda potência económica da União, que tem um poder militar e diplomático significativo, que escolheu sair da pior maneira possível. Sem estratégia, o que obriga o Governo a recorrer aos velhos tiques imperiais que há muito deixaram de fazer sentido. Numa posição de fraqueza, porque não houve, até agora, qualquer efeito de contágio. Sem qualquer visão do futuro pela simples razão de que, até ao dia 23 de Junho do ano passado, este cenário não passava pela cabeça de ninguém responsável pelos destinos do país.

A construção do "Brexit" teve de ser feita à posteriori, no dia-a-dia. Theresa May esconde as cartas contra o peito, mas suspeita-se que esteja a fazer bluff. Não tem ninguém que a desafie, porque o Labour de Jeremy Corbyn não vai combater por uma Europa na qual não acredita. Até agora, a contagem decrescente para accionar o Artigo 50º não passou de um jogo de pingue-pongue político entre Londres e Bruxelas. O acesso ao Mercado Único, que chegou a ser uma prioridade, já foi sacrificado no altar da imigração. O “Brexit” traduz a vitória da metade que não gosta do multiculturalismo e que vê a sua vida pacata e confortável ameaçada pelos imigrantes, sobre a outra metade, que dá a Londres o estatuto de cidade mais global do mundo.

3. Desde a II Guerra que a “relação especial” com os EUA é a trave-mestra da política externa britânica. Foi forjada no combate solitário dos britânicos contra Hitler, à espera da intervenção americana. Churchill ainda acreditou que o império iria subsistir. A Europa unida que defendeu não incluía o seu país. A América preparava-se para ocupar o lugar deixado vago pelo império britânico, apoiando a libertação das colónias e construindo a nova ordem liberal que subsistiu até hoje. Nada disso abalou o laço transatlântico.

O Reino Unido tornou-se progressivamente uma peça fundamental do xadrez político europeu. Com a unificação alemã, a sua presença tornou-se ainda mais importante. Forjou uma aliança militar com a França nas guerras dos Balcãs, onde os dois países sofreram a humilhação de ter de apelar à intervenção americana para travar um massacre. O maior erro de cálculo de May e daqueles que, antes dela, resolveram jogar o destino do seu país numa mesa de poker e perderam, foi não antecipar (talvez não pudesse) que a relação histórica com os Estados Unidos estava prestes a sofrer o maior revés. Com Donald Trump e a sua obsessão pela “America First”, May não pode contar com os EUA para forçar a mão aos europeus e apresentar uma alternativa. A Commonwealth é constituída por países independentes que prosseguem a sua própria estratégia.

4. Sem o Reino Unido, a Europa ficará amputada do seu lado atlântico e deixará de novo a França e a Alemanha frente a frente, para tentarem dar sentido a uma Europa que se vê obrigada a assumir novas responsabilidades no domínio da defesa e da diplomacia. Será uma Europa mais alemã. Perderá uma capacidade militar insubstituível de um país que está habituado a usá-la. Mas também a sua maneira aberta de olhar para o mundo. Como será esta Europa amputada? Ninguém sabe. Os líderes europeus resolveram ostentar uma aparente indiferença perante o “Brexit”, como se se tratasse de um pequeno percalço do caminho. Têm o mesmo interesse estratégico que Londres numa negociação positiva para ambos os lados. É possível? É. Desde que as duas partes aceitem a realidade e percebam que é do seu máximo interesse minorar os inevitáveis estragos.

O resto do mundo passará a olhar para a Europa e para o Reino Unido com mais condescendência. As potências emergentes sabem que só dificilmente haverá uma “Global Britain” e que a possibilidade de uma “Global Europe” diminui. Exactamente quando é mais precisa. O mundo anglo-saxónico, que construiu a ordem liberal em que vivemos, retira-se. Não é propriamente uma boa notícia. 

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