“Não estamos parados à espera dos Estados Unidos”

A Europa ainda está à espera que a equipa de Trump esteja completa para saber até onde irá em matéria de proteccionismo. Entretanto, negoceia em várias frentes, explica a comissária europeia do Comércio, Cecilia Malmström.

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Cecilia Malmström, 48 anos, é comissária europeia do Comércio desde 2014 A.v.Stocki/Ullstein Bild/Getty Images

Cecilia Malmström, responsável pelo Comércio, tem uma das pastas mais poderosas da Comissão. Não só porque a União Europeia é o maior bloco comercial do mundo, como porque a política comercial é exclusiva competência da UE. Vem de um país que defende o comércio livre, a Suécia, já foi comissária dos Assuntos Internos, de 2010 a 2014. Membro do Partido Liberal, foi ministra dos Assuntos Europeus antes de rumar a Bruxelas. Enfrenta agora o risco de ver o maior parceiro económico da Europa enveredar pelo proteccionismo.

Do que já sabemos da nova Administração americana, como é que vê as relações comerciais com os EUA? Está à espera de uma mudança radical?
A verdade é que ainda não temos todas as respostas. Já vimos uma primeira mudança. O Presidente fez aquilo que tinha dito que fazia durante a campanha eleitoral. Vai começar a renegociar o NAFTA (Acordo de Comércio Livre da América do Norte, com o México e o Canadá, 1994) e acabou com a Parceria Transpacífica (11 países do Pacífico menos a China, negociado por Obama). Sobre o TTIP (Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento) ainda não disse nada de especial…

Mas suspendeu as negociações.
Sim, há uma pausa. Ainda estamos à espera que o representante americano para o Comércio seja confirmado no Congresso, para poderemos falar com ele. Tenho estado a acompanhar as audições e o TTIP foi apenas mencionado en passant, mas creio que eles ainda não têm uma decisão política sobre ele. Quanto às outras questões relacionadas com o comércio, temos de esperar para ver, embora haja alguns sinais preocupantes. Estamos preocupados com a OMC, que foi considerada como pouco importante, e nós precisamos que os EUA continuem a ter lá uma presença forte, porque fazemos parte dos que acreditam em regras globais e instituições multilaterais. Também não podemos negar que as questões ligadas às tarifas alfandegárias nos preocupam bastante. Temos de ver o que vai sair desse debate.

Se o proteccionismo americano vier a concretizar-se, quais serão as consequências para a economia europeia e para as relações económicas com os outros grandes parceiros?
Uns Estados Unidos proteccionistas são maus para o mundo inteiro. Para a China, para o México, para o Canadá. Acabo de vir do Canadá, onde fui falar sobre o CETA (Acordo Económico e Comercial entre a UE e o Canadá), mas também destas preocupações gerais que são comuns. Toda a gente está a seguir com muita atenção o que se está a passar. Mas, entretanto, a União Europeia está a ser muita activa em várias frentes. O CETA entrará em vigor dentro de algumas semanas. Na semana passada, tivemos negociações com o Mercosul em Buenos Aires.

As negociações do Mercosul estiveram paradas muito tempo.
Mas agora não estão. Já estamos muito avançados nas negociações do acordo União Europeia-Mercosul. Estamos também a negociar com o México e com o Japão, e as coisas estão a avançar muito depressa. Esperamos ter um acordo concluído com o Japão até ao final do ano. Mas também estamos a negociar com vários países asiáticos, por exemplo, Indonésia e as Filipinas; estamos a preparar as negociações com a Austrália e a Nova Zelândia ou com o Chile e com vários países em África. Portanto, temos uma agenda comercial muito ambiciosa. Não estamos parados a ver o que se vai passar nos Estados Unidos.

Mesmo que o mercado americano seja praticamente o maior do mundo…
E o nosso parceiro económico mais importante. Por isso, logo que a Administração esteja plenamente a funcionar, no final da Primavera, vamos falar com eles para saber o que pode ser uma agenda comercial positiva entre os dois lados.

A importância dos EUA também se vê pela parceria que estava a ser negociada e que ia muito além de qualquer outro acordo.
Sim. Nunca embarcámos em algo tão ambicioso. Ainda temos cerca de metade do TTIP na caixa das negociações. Temos de ver se é possível abrir essa caixa com a nova Administração. Porque para os Estados Unidos, este tipo de acordo também faz muito sentido. Somos os seus principais parceiros, tudo o que seja facilitar o comércio e o investimento é um objectivo racional para os dois lados. Espero que eles vejam isso como nós e que olhem com cuidado para tudo o que lá está, para podermos começar a trabalhar. Mas ainda não sabemos.

Em Davos, no mês passado, ouvimos o Presidente chinês arvorar-se no líder do comércio livre. As coisas não são bem assim e o investimento estrangeiro, por exemplo, enfrenta restrições complicadas. Como vê as relações com a China no novo contexto americano?
A China é um parceiro muito importante. Eu estava em Davos e o discurso do Presidente chinês foi fantástico. Falta-nos verificar se as palavras correspondem aos actos. Concordo consigo quando diz que a China não é propriamente o campeão de uma economia assente no mercado. Há imensas coisas que eles têm que fazer. Estamos a tentar ajudá-los a levar a cabo algumas reformas, e estamos a negociar um acordo de investimento, que será o primeiro. Quando estiver concluído, queremos avançar com um acordo comercial, mas temos de ter a certeza de que os nossos empresários têm um tratamento igual na China ao que os chineses têm na Europa. O equilíbrio ainda não existe.

Mas para a China, a relação com a União Europeia torna-se mais importante, face ao proteccionismo americano.
Também penso isso. Apesar dos conflitos que temos com a China, ainda é um parceiro que acredita no sistema multilateral. Trabalhamos com ela na OMC. Temos desentendimentos, mas também podemos encontrar na China um parceiro.

Temos o mesmo tipo de movimentos proteccionistas e contra a globalização, que levaram Donald Trump à Casa Branca. Estas tendências são também um problema europeu?
Absolutamente. Temos Le Pen ou Geert Wilders. São preocupantes, e temos de garantir que os partidos políticos tradicionais e outras forças políticas lhes façam frente, porque não são apenas antiglobalização, são também racistas, anti-semitas, islamófobos. Temos de os combater politicamente, mas precisamos também de ouvir algumas das suas preocupações, porque eles reflectem os receios das pessoas comuns. Houve uma globalização muito rápida e houve gente que não conseguiu acompanhar as mudanças. As pessoas perderam os seus empregos porque eles desapareceram, mesmo que outros tenham nascido. Mas nem sempre é fácil mudar de uns para os outros. Temos de ouvir estas preocupações e procurar uma estratégia global para lhes responder. O que quer dizer que precisamos de trabalhar em conjunto para garantir que investimos muito mais em educação, formação, especialização…

E políticas sociais…
Sim, com protecção social para os que perderam os seus empregos. Industrialização ou robotização são fenómenos que acontecem há centenas de anos, não há nada novo. O que é novo é que, agora, tudo isso acontece muito depressa. As pessoas que sentem que foram deixadas para trás, que perderam os seus empregos, que estão preocupadas com o futuro estão mais expostas às receitas populistas, que parecem muito fáceis.

Vemos isso em toda a Europa.
Sim. A verdade é que os partidos tradicionais falharam, não ouviram estas preocupações, nem lhes responderam.

Pensa que a União Europeia é o nível adequado para responder a estas preocupações?
É uma combinação. Os Estados-membros têm pleno controlo dos seus sistemas sociais e plenos poderes quanto aos impostos, por isso cabe-lhes gerir estes sistemas. Mas creio que a Europa pode ajudar. Estamos a avaliar como é que devemos utilizar os fundos sociais, os fundos estruturais, o fundo de globalização, de forma mais inteligente, encorajando os governos a levar a cabo estas reformas. Muitos países têm sofrido imenso, como Portugal, com a crise económica. Agora, estamos a ver uma retoma lenta, por isso penso que é o momento de trabalhar em conjunto. Mas as principais reformas sociais têm de ser nacionais, porque é assim que as coisas funcionam. Mas devemos fazê-lo juntos e muito depressa, para conseguir acompanhar os que se sentem frustrados.

Temos eleições em França, na Alemanha, talvez na Itália. No seu país, há uma extrema-direita contra a globalização e os imigrantes. Isso limita a capacidade europeia de encontrar soluções rápidas, como está a defender.
Não é fácil, tem razão. Mas estamos agora a celebrar os 60 anos do Tratado de Roma, vemos todos esses desafios, e muitos outros de que não falámos, como o ‘Brexit’, e isso talvez nos ajude a aproximarmo-nos de novo…

Trump ajuda bastante…
E não só ele. Temos a Rússia, a Ucrânia, a Turquia. E temos de perceber que aquilo que fizemos na Europa é algo de fantástico. E temos de perguntar-nos como é que desenvolvemos este legado. Como é que podemos garantir que, daqui a 60 anos, ainda estamos a celebrar a União Europeia. Talvez isto nos aproxime um pouco. As crises ajudaram-nos sempre a avançar.

O processo formal do ‘Brexit’ está quase a começar. É inédito. Como é que vê as negociações?
Não há qualquer dúvida de que as negociações serão difíceis, porque são muitas as questões que vão ter de ser resolvidas. Contudo, o Reino Unido é um país amigo, um aliado e um vizinho, e precisamos de encontrar uma forma positiva de coexistir no futuro. O povo britânico escolheu sair da União. É algo que me entristece muito. Mas temos de respeitar a sua vontade e, a partir de agora, trabalhar para uma boa solução, tanto para eles como para a União Europeia.

Como avalia o impacto que o Livro Branco pode ter, com os seus cinco cenários? Acredita que poderá influenciar os debates nacionais?
Tenho esperança de que sim. Todas estas questões que estamos aqui a discutir estão a ser discutidas em toda a Europa. Claro que não acredito que, daqui a seis meses, possamos dizer: é a alternativa 3. Mas pode incentivar o debate. Vou com a Margarida [Marques, secretária de Estado dos Assuntos Europeus] participar num debate agora mesmo. Na próxima semana, vou a Zagreb fazer a mesma coisa. Os meus colegas estão a viajar por toda a Europa, a participar em iniciativas espontâneas. Mas não é só a Comissão. Os parlamentos nacionais e a sociedade civil estão a debater para onde vamos e qual deve ser o futuro da Europa. Creio que o Livro Branco pode ser uma boa base de discussão, porque nos obriga a pensar sobre para onde queremos ir e porquê.

Em termos geopolíticos, qual vai ser o impacto das mudanças nos Estados Unidos na ordem internacional?
Ainda é demasiado cedo para perceber. A União Europeia e os EUA estão ligados pela história, pela amizade, pela cultura, isso permanece e é uma ligação muito forte. Os sistemas políticos são muito próximos. Tal como é grande a nossa gratidão pelo que eles fizeram para ajudar a Europa. Se eles escolherem afastar-se da OMC, dos acordos internacionais sobre o clima, das Nações Unidas, da NATO, isso quer dizer que a Europa terá de fazer mais por si própria e procurar outros parceiros

E crê que estamos preparados para isso? Que as opiniões públicas vão aceitar uma responsabilidade global maior?
Creio que os nossos cidadãos esperam que a Europa consiga agir em conjunto um pouco mais. Já atravessámos tantas crises, tantas divisões, que os europeus estão a pedir-nos agora que exerçamos alguma liderança. Mas não creio que alguma vez possamos substituir os Estados Unidos. Estamos a dar um pequeno passo em frente enquanto esperamos que a Administração americana esteja completa para tentar perceber melhor para onde quer ir.

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