Carlos do Carmo na Culturgest, dois desejos (bem) cumpridos

A Carlos do Carmo faltava ainda pisar um palco (quem diria), o da Culturgest. E fê-lo com um saber de décadas e uma voz imaculada. Só foi pena não ter ido mais além dos fados eternos.

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Carlos do Carmo numa actuação recente (Museu dos Coches, 3 de Fevereiro de 2017). Atrás dele, Carlos Manuel Proença, na viola de fado, e Marino de Freitas, no baixo MIGUEL MANSO

Mesmo na vida de um cantor de longa carreira como Carlos do Carmo ainda há espaço para uma primeira vez. Foi assim que ele se estreou na noite de 25 de Março no palco da Culturgest, uma sala que faltava no imenso lote de palcos onde já se apresentou, aqui e no mundo. Faltava porquê? Porque Miguel Lobo Antunes, que muito o admira, não lho pediu “por acanhamento”, como diz no texto introdutório do espectáculo. “Achava que ele era grande de mais” para aquela sala. Mas foi Carlos do Carmo, que ali vai amiúde como espectador, que um dia lhe disse que gostava de cantar na Culturgest enquanto Miguel ainda ali estivesse (e, como se sabe, ele sairá este ano). A combinação “teria de ser rápida” e foi. “Em três dias ficou tudo acordado.” Agora vimos como.

A primeira coisa que deve ser dita é esta: Carlos do Carmo canta como fala ou como respira, com uma naturalidade desarmante. Não há uma palavra fora do lugar, um acabamento deslocado, um passo em falso. Nem mesmo a pose distinta de patriarca do fado, que a muitos agrada e a outros irrita, consegue toldar ou macular a boa estrela que lhe guia a voz e o abençoa. À semelhança de Sinatra, ele cumpre-se na voz. E tem, como sabemos e ele sabe, lugar cimeiro na história do fado.

Talvez por tudo isto ele tenha arriscado uma coisa que mais ninguém, até hoje, ali fez: começar o espectáculo como se estivesse numa casa de fados, sem microfone, para ele ou para os músicos. E fê-lo não no palco mas a meio da sala, no espaço que divide o Grande Auditório em duas plateias. Ali cantou seis fados: Por morrer uma andorinha (Frederico de Brito e Alfredo Marceneiro), Duas lágrimas de orvalho (Linhares Barbosa e Pedro Rodrigues), Vou contigo coração (Fernando Pinto do Amaral e Alfredo Marceneiro), Carta a Ângela (Carlos de Oliveira e Miguel Ramos), Pontas soltas (Maria do Rosário Pedreira e Joaquim Campos) e À memória de Anarda (Bocage e Marceneiro, de novo, desta vez no Fado CUF). Com ele estavam José Manuel Neto, na guitarra portuguesa, e Carlos Manuel Proença, na viola de fado. Segundo disse, foi como num jogo de adivinhas: eles davam-lhe as entradas, o mote musical, e só a partir daí ele sabia o fado que iria cantar. Correu muito bem, o desafio, e ainda mais a forma como ele se fez ouvir perante uma sala atenta e em silêncio.

Para não provocar torcicolos a alguém (como ele gracejou, a dada altura), os três dirigiram-se depois ao palco. Primeiro os dois músicos, que ali se juntaram ao baixista Marino de Freitas para uma muito aplaudida rapsódia instrumental; e depois Carlos do Carmo, já com o trio, para retomar o fio aos fados com o inevitável e já emblemático Um homem na cidade (Ary dos Santos e José Luís Tinoco). Vieram depois mais oito: Calçada à portuguesa (Ivan Lins e José Luís Tinoco), Fado do Campo Grande (Ary dos Santos e António Victorino de Almeida), Fado Penélope (Manuela de Freitas e José Mário Branco), Júlia florista (Joaquim Pimentel e Leonel Vilar), Gaivota (Alexandre O’Neill e Alain Oulman), Bairro Alto (Carlos Neves e Francisco Carvalhinho), Canoas do Tejo (Frederico de Brito) e, por fim, Lisboa menina e moça (Ary dos Santos, Joaquim Pessoa e Fernando Tordo). A todos cantou de cor, sem papéis ou lembretes visíveis, porque já fazem parte do seu repertório seleccionado, como o disco Fado Maestro (que ele próprio compilou em 2008) confirma.

Aos 77 anos de vida e 53 de carreira (só intervalados por delicados problemas de saúde que o obrigaram mesmo a parar e que ele, felizmente, superou), Carlos do Carmo já não precisa de provar nada. Mas a “estreia” na Culturgest podia ter sido aproveitada para ir além dos fados eternos, aqueles que as plateias já sabem de cor (e se ele insistiu para que os cantassem!), até porque no seu vastíssimo repertório há fados lindíssimos que só raramente assomam à ribalta e ali poderiam ter brilhado. E ninguém reclamaria, pelo contrário. Outra coisa: Carlos do Carmo, a dada altura do espectáculo, mostrou espanto por a lotação da sala estar já praticamente esgotada desde Dezembro do ano passado, porque ele já não seria “o que está a dar”. É um erro de apreciação ou até auto-menosprezo: nunca ele deixou de “estar a dar” e nunca (ou raramente) se lhe fecharam palcos ou ribaltas, porque ele tem sabido ocupá-los. E quer através do reconhecimento do público que a eles acorre quer das instituições oficiais que o têm distinguido, há um continuado apreço pelo seu trabalho passado, presente e futuro. A Culturgest esgotadíssima foi prova disso.

A noite não terminou, porém, na Lisboa menina e moça. Depois deste fado ainda viriam mais dois, extra-repertório: o Menor do Porto com um poema de Hélia Correia (e aqui ele lembrou Teresa Silva Carvalho, que o cantava acompanhando-se ao piano) e Fui de viela em viela, letra de Guilherme Pereira da Rosa e música (e criação) de Alfredo Marceneiro, no seu Fado Cravo. Um final aplaudido de pé, como já o fora o “falso” final, momentos antes. Cumpriram-se assim, de uma só vez, dois desejos: o de Miguel Lobo Antunes e o de Carlos do Carmo. Irmanados num terceiro: o do próprio público.

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