Luta anticorrupção é uma arma para Navalni e para o Kremlin

As revelações sobre o estilo de vida luxuoso do primeiro-ministro russo deram origem aos maiores protestos em vários anos na Rússia. Medvedev pode ser mais uma vítima da guerra de facções em torno de Putin.

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Detenção de manifestante da oposição em Moscovo Maxim Shemetov/REUTERS
Grupo de manifestantes no domingo em São Petersburgo
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Grupo de manifestantes no domingo em São Petersburgo EPA/ANATOLY MALTSEV

No domingo, milhares de russos desafiaram as autoridades – e as temperaturas próximas de zero – e marcharam em Moscovo e noutras cidades, arriscando confrontos com a polícia, uma vez que as manifestações não tinham sido autorizadas. Mais de mil pessoas foram detidas, incluindo o principal líder da oposição, Alexei Navalni, mesmo sabendo que as perspectivas de mudança política estão próximas do número marcado nos termómetros. Tudo por causa de um vídeo.

Ao longo de 49 minutos, Navalni mostra como o primeiro-ministro russo, Dmitri Medvedev, tem levado uma vida de luxo, dividida entre quatro mansões espalhadas pela Rússia, dois iates, uma vinha na Toscânia e muito, muito dinheiro. Nenhum dos bens está em nome do ex-Presidente russo, mas pertencem a organizações sem fins lucrativos lideradas por amigos e colaboradores próximos. A forma de canalizar o dinheiro varia entre empréstimos – como um de 473 milhões de dólare concedido pela Gazprom – e desvios de fundos de empresas públicas e semipúblicas.

“Não lhe chamem Dimon”, aconselha Navalni, referindo-se ao diminutivo pelo qual Medvedev é conhecido e que reflecte a sua figura pública: “Um entusiasta de gadgets e smartphones, um simplório ridículo, que adormece durante cerimónias importantes.” O verdadeiro Medvedev, de acordo com a investigação da Fundação Anti-Corrupção, “é louco por dinheiro e propriedades de luxo”. Em pouco mais de três semanas, o vídeo foi visto quase 13 milhões de vezes.

Grande parte das acusações feitas por Navalni não são inéditas. O próprio activista, que fez da luta contra a corrupção a sua primeira grande cruzada, já tinha denunciado uma das fundações próximas de Medvedev. A jornalista Karina Orlova, da rádio independente Eco de Moscovo, escreve na revista American Interest que na investigação de Navalni “só há duas novas informações: a vinha da Toscânia e um dos iates”.

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O primeiro-ministro Medvedev foi o alvo dos protestos promovidos por Navalni ANATOLY MALTSEV/EPA

Mas o filme de Navalni deu origem aos maiores protestos desde que Vladimir Putin regressou à presidência, em 2012, depois de um mandato como primeiro-ministro, com Medvedev na presidência. Apesar da nova demonstração de força, a oposição continua a ser muito débil e a repressão do Kremlin não dá qualquer margem de manobra – Navalni, por exemplo, está impedido de avançar com a sua candidatura à presidência em 2018 por ordem do tribunal.

Alvo Medvedev

É muito pouco provável que as revelações sobre Medvedev ponham em causa a popularidade de Putin. “O cidadão comum acredita que ‘todos os que estão no poder são ladrões’”, escrevia no início do mês o investigador do Centro Carnegie de Moscovo Andrei Kolesnikov. “Acreditam que nada podem fazer para mudar a situação, que não podem forçar as autoridades a sair e que agitar o barco só tornaria as coisas piores”, acrescenta.

Mas se a maioria dos pormenores sobre a teia que liga Medvedev ao seu património oculto era já conhecida, porquê revelá-los agora? No esquema de poder vertical encabeçado por Putin são conhecidas as lutas entre facções para obterem influência no seio do círculo dominante. Personalidades relevantes caem em desgraça numa questão de semanas, naquilo que o jornalista e autor do livro All the Kremlin’s Men, Mikhail Zygar, chama de “freios e contrapesos” do sistema político russo.

Foi o que aconteceu recentemente com o ex-ministro da Economia, Alexei Uliukaiev, detido de forma surpreendente por acusações de corrupção. Karina Orlova sugere que Medvedev pode estar a ser alvo de uma tentativa de purga semelhante, para o impedir de ser um potencial sucessor de Putin. “Aparentemente, entre os grupos de siloviki [ex-membros dos serviços secretos que, tal como Putin, ascenderam a postos de poder] em confronto, um não quer ver Medvedev como sucessor. E por causa da relação especial entre Putin e Medvedev, é impossível apenas persuadir Vladimir Putin a despedir o seu companheiro”, conclui a jornalista.

O futuro de Medvedev pode, desta forma, estar em suspenso. O analista do Centro para a Informação Política Alexei Mukhin disse à Rádio Europa Livre que existe “um acordo entre o primeiro-ministro e o Presidente, e Medvedev deverá permanecer no cargo pelo menos até Dezembro”.

Não é a primeira vez que Medvedev aparece numa situação de fragilidade na política russa. No final do seu mandato como Presidente, tornou-se público o seu desejo de se recandidatar, arriscando até entrar em rota de colisão com Putin. Apesar de alguma tensão – cuja face mais visível foi o desacordo público em relação à intervenção da NATO na Líbia, que Medvedev apoiou – Putin nunca prescindiu daquele que é visto como um dos seus aliados mais próximos.

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