Incumprimento baixa mas ainda há 134 mil a falhar a prestação da casa

Programa de regularização de dívidas imposto aos bancos, melhoria do mercado de trabalho e descida da Euribor ajudam a explicar redução do incumprimento.

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O facto de o mercado imobiliário estar mais “líquido” nos últimos dois anos permite a venda mais fácil das casas por parte dos proprietários em dificuldades ou mesmo em incumprimento. Rui Gaudêncio

O número de pessoas que no final ano estavam em falta no pagamento da prestação da casa atingiu o nível mais baixo desde finais de 2010, mas havia ainda 134 mil devedores em incumprimento no crédito à habitação. A impulsionar esta redução está tanto a descida das taxas Euribor e a recuperação do mercado de trabalho, como o programa de regularização de situações de incumprimento que os bancos são obrigados a propor aos clientes com prestações em atraso.

Mas se as estatísticas mais recentes do Banco de Portugal mostram uma redução do crédito malparado entre quem contraiu crédito à habitação, com menos 11 mil devedores no final de 2016 do que um ano antes, a realidade que chega à Deco é menos animadora. Não há menos famílias a pedir ajuda “estejam elas, ou não, já em incumprimento com o crédito à habitação”, descreve Natália Nunes, coordenadora do gabinete de apoio ao sobre-endividado.

De 2,3 milhões de clientes bancários com empréstimo à habitação no quarto trimestre do ano passado, o Banco de Portugal estima que 5,9% tinha nessa altura crédito vencido num valor a rondar 3000 milhões de euros.

A percentagem de devedores com empréstimos em incumprimento é historicamente superior à realidade do endividamento no crédito à habitação: chega a 13,2%, valor que também tem vindo a recuar. Ao todo, há 581 mil pessoas em incumprimento (crédito total). De resto, outro dado que o BdP confirma é o nível de desendividamento dos particulares, que se iniciou já a partir de 2012.

A queda do número de devedores é explicada por vários factores, entre os quais a descida das taxas de juros e alguma melhoria no mercado de trabalho (o desemprego recuou para 10,5% no último trimestre de 2016). Mas a maior responsabilidade pertence ao Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), que, ao ser lançado já em 2013, veio estabelecer as regras que os bancos têm de seguir no acompanhamento dos casos em que as pessoas estejam em incumprimento. O objectivo é renegociar as condições dos contratos antes de os processos chegarem à justiça.

Prazos maiores

No crédito à habitação, e desde Janeiro de 2013, foram abertos 499.327 processos, envolvendo 252.360 empréstimos (a diferença é explicada pelo facto de o mesmo contrato de crédito ser integrado mais do que uma vez no programa), no montante de 13.200 milhões de euros. Deste universo, e até ao final do primeiro semestre de 2016, foram concluídos 470.631 processos, dos quais mais de metade (56%) foram fechados tendo havido regularização da dívida que estava em incumprimento. A renegociação é uma das vias mais seguidas, permitindo uma descida da prestação mensal ao ser criados períodos de carência de capital e/ou juros, alargamento do prazo, entre outras.

No crédito aos consumidores, os números de devedores são bem mais expressivos, mas o valor de crédito em causa é mais baixo. Desde o arranque do programa, foram abertos 2,1 milhões de processos, relativos a 1,3 milhões de contratos, com um montante total em dívida de cerca de 3600 milhões de euros. Como o devedor entra em incumprimento várias vezes, também aqui os números dos processos contabilizados pelo BdP são superiores ao número de empréstimos. Neste segmento, só no primeiro semestre de 2016 foram abertos 321 mil novos processos.

Até Junho do ano passado, foram concluídos 1,9 milhões de processos, com o rácio de processos concluídos com regularização do incumprimento a totalizar 40,7%. A maioria incidiu sobre dívidas contraídas com cartões de crédito (52,8%), seguindo-se o crédito pessoal (20,7%) e as facilidades de descoberto (17,8%). A solução mais seguida na renegociação dos empréstimos tem sido o diferimento de capital para a última prestação e o alargamento do prazo de reembolso de pagamento.

Há outros programas, como o Regime Extraordinário, seja para apoiar famílias com crédito à habitação, seja para quem se encontre em situação económica muito difícil. E há ainda o Plano de Acção para o Risco de Incumprimento (PARI), mas com resultados pouco expressivos.

Antecipar subida de juros

O que tem ajudado a reduzir a factura mensal dos empréstimos é, por outro lado, a descida das taxas de juro – bem mais acentuada no crédito à habitação, mas também visível no caso do consumo. As taxas estão em queda desde 2008, altura em que a Euribor a seis meses (o prazo mais utilizado no conjunto dos empréstimos existentes) atingiu 5,219%. Embora a um ritmo mais lento, a Euribor continua em queda e está agora em terreno negativo (-0,24% em Fevereiro).

O facto de o mercado imobiliário estar mais “líquido” nos últimos dois anos (com mais transacções) permite a venda mais fácil das casas por parte dos proprietários que estão com dificuldades de suportar os empréstimos ou mesmo em incumprimento. Os dados do INE mostram um crescimento das vendas de casa nos últimos quatro anos, de forma consecutiva, tendo crescido 27% em 2015 e 18,5% em 2016.

Com a recuperação do mercado de trabalho, as famílias terão aumentado a capacidade de suportar os encargos com os empréstimos realizados. Ainda assim, a experiência da Deco não é muito optimista. Do contacto diário com as famílias, Natália Nunes, do gabinete de apoio ao sobre-endividado, nota que apesar de haver mais pessoas a conseguirem encontrar emprego, “os rendimentos não são suficientes para pagar o crédito à habitação e todos os outros créditos”.

Quando as famílias começam a enfrentar dificuldades deixam primeiro de pagar os cartões de crédito, os cartões pessoais e só mesmo em último lugar, esgotadas as várias possibilidades, é que deixam de pagar o crédito à habitação. Esta é a realidade descrita pela Deco e que se confirma de resto nos dados do banco central.

Importante neste momento em que a contratação de novos créditos está a aumentar, aconselha Natália Nunes, seria que “as pessoas que estão hoje a contratar – e a própria banca – reflectissem sobre o que aconteceria na prestação se as taxas Euribor subissem para valores de 2007/2008 [em que se verificaram os valores máximos]. Possivelmente, muitas pessoas deixariam de contratar”.

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