Homens despojados de tudo

Svetlana Alexievich torna a dar voz aos que não estavam destinados a ficar na História, assumindo-se como uma “historiadora” do que não deixa vestígios.

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Autora de cinco livros, e distinguida várias vezes, é tida por muitos como criadora de um novo género literário de não-ficção

Pela sua “escrita polifónica, um monumento ao sofrimento e à coragem no nosso tempo”; foi assim que a Academia Sueca justificou, no momento do anúncio, a atribuição do Prémio Nobel 2015 à escritora bielorrussa Svetlana Alexievich (n. 1948). Autora de cinco livros, e distinguida várias vezes, é tida por muitos como criadora de um novo género literário de não-ficção.

Ao escrever sobre factos reais, apropria-se da arte de contar que foi buscar à literatura oral e, de certa maneira, também ao romance. Os seus livros são compostos de páginas inteiras de vozes (a sua apenas se faz ouvir no início) em discurso directo, vozes que são o resultado de centenas de entrevistas, de conversas tidas por várias vezes, vozes encadeadas umas nas outras, como se assim em bocados de conversas se fossem arrumando em temas, seguindo uma subtil sequência interna. Entre as várias vozes parece haver uma que as une, que lhes dá coesão depois de despojadas das contextualizações e de cronologias desnecessárias, mas deixando intacta a profundidade, a originalidade de cada voz que contou. O seu método foi-se aperfeiçoando ao longo de uma carreira de repórter que já leva quase quarente anos, a sua escrita burilou-se, despojou-se, e ela foi percebendo que nas centenas de entrevistas que fazia de cada um dos temas sobre os quais queria escrever, apenas o “essencial” lhe interessava, sem floreados, queria apresentar os factos deixando ver o osso. Como se a literatura já não lhe chegasse, como se a literatura “asfixiasse nos seus limites”.

Svetlana Alexievich reduz a História à dimensão humana. Foi isso que aconteceu em Vozes de Chernobyl e em A Guerra Não Tem Rosto de Mulher (ambos os títulos publicados pela Elsinore em 2016), e também no seu livro mais recente, Rapazes de Zinco, em que dá voz aos soldados soviéticos — e às suas famílias (sobretudo às mães) — que combateram no Afeganistão, numa guerra que durou quase dez anos e que fez quinze mil mortos (os “rapazes de zinco”, por os seus corpos serem devolvidos em caixões de zinco) e cinquenta mil feridos, muitos dos quais mutilados, para além das dezenas de milhar que voltaram “sem juízo”. Também a autora bielorussa visitou o Afeganistão como repórter, quase no fim da guerra, em Setembro de 1988; algumas das conversas que reproduz foram tidas lá. E interrogou-se: “Quem acreditará em mim se escrever sobre isto?” Mas o que lhe interessa não é a reprodução dos factos, o que só pode expressar o que é visível ao olhar, não é preciso um relatório pormenorizado do que está a acontecer.

É preciso algo diferente. “Como é possível viver a história e ao mesmo tempo escrever sobre ela? É impossível agarrar pelo cachaço um fragmento da vida, toda a sujidade existencial, e arrastá-los para dentro do livro. Para dentro da história. É  preciso abrir uma brecha no tempo e captar o espírito.” E esse espírito é o diálogo interior que aqueles que aceitam falar com ela são ‘obrigados’ a ter. “É impossível contar tudo… Aconteceu o que aconteceu, depois disso restou o que vi e memorizei, sendo apenas uma parte do todo, e mais adiante há de surgir o que serei capaz de contar.”

Svetlana Alexievich investiga e regista quase como o faria alguém com preocupações de historiador, mas ela é “uma historiadora do que não deixa vestígios”, como a própria se define. Ela segue os sentimentos de quem participou nos acontecimentos, não os acontecimentos em si, isso não lhe interessa. Sabe que uma pessoa é única para alguém. “Não interessa como o Estado a trata, mas quem ela é para a mãe, para a mulher. Para o filho.”

Rapazes de Zinco não é um livro sobre a guerra soviética no Afeganistão, sobre o engano dos soldados, sobre a política e os seus jogos estratégicos, é sobre aquilo que não ficará na História, que não estava destinado a ser registado nos anais, é sobre o pequeno, o ínfimo, sobre vozes de soldados que não era suposto contarem que eram alimentados com carne com vermes, com peixe que sabia a ferrugem, que sofriam quase todos de escorbuto, que lhes caíram os dentes; é um romance feito de vozes de soldados que serão perseguidos pelas memórias a vida inteira, vozes em confissão onde nada é inventado porque não é preciso inventar nada. E é também um livro sobre a natureza do homem despojado de civilidade, sobre o horror, sobre o homem na guerra e a ser salvo porque a sua consciência se distrai, se dissipa. Dostoiévski, pela boca de Iván Karamázov, e citado por Alexiovich, disse: “A fera nunca pode ser tão cruel como o homem, tão artisticamente, tão esteticamente cruel”. As guerras são os cenários perfeitos.

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