Uma dança de corte parada no tempo (100 milhões de anos) num pedaço de âmbar

Um pedaço de resina fóssil pode trazer até à actualidade uma cena romântica do período Cretácico. E qual foi a estratégia usada numa dança de corte? Um jogo de pernas, descobriu-se agora.

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Reconstituição do comportamento de corte, com o macho à esquerda e a fêmea à direita YANG Dinghua

É como se uma cena de um filme com 100 milhões de anos chegasse agora até nós. Dois insectos da ordem Odonata ficaram encurralados em âmbar do período Cretácico. E mais do que a distância do tempo em que viveram, há uma cena romântica nesse pedaço de resina fóssil: um macho tentava conquistar uma fêmea. E como o fazia? Com um jogo de pernas, em que a tíbia era a sua principal arma para atrair a fêmea. Pelo menos é o que nos sugere um artigo científico (o guião da cena) publicado na revista Scientific Reports.

Este pequeno pedaço de âmbar foi recolhido no Vale de Hukawng, no estado de Kachin, na Birmânia. Tem cerca de 100 milhões de anos, portanto vem do período Cretácico (compreendido entre há cerca de 140 milhões de anos e 65 milhões). Esse era um tempo em que na Terra viviam os dinossauros, os plesiossauros, as serpentes, e já plantas com flor, marsupiais, borboletas, mamíferos placentários, primatas, tartarugas, algas castanhas ou bivalves. E os Odonatas da espécie Yijenplatycnemis huangi, como se chamam as duas personagens desta película em resina.

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Os insectos presos no pedaço de resina fossilizada descoberto na Birmânia YANG Dinghua

Para se perceber a dimensão desta cena, é necessário saber que da ordem Odonata fazem parte as libélulas e libelinhas. Já agora, Odonata vem do grego e refere-se à estrutura bocal dotada de dentes, que tem quitina, tal como o exosqueleto dos insectos, e quando essa estrutura morde tem o aspecto de dentes afiados. Esta foi a imagem que fez com que estes insectos fossem, numa certa altura, temidos pelo ser humano e denominados de “tira-olhos”, “cavalinho-das-bruxas”, “dragões-voadores” ou “balanças-do-diabo”.

Mas voltemos à cena no âmbar (que não é de terror, mas sim romântica). O que suscitou o interesse da equipa de cientistas liderada por Daran Zheng, paleontólogo da Academia de Ciências da China, foi a tíbia estendida do macho dentro do âmbar. Não é frequente que os insectos machos estendam a perna (que é formada por fémur, tíbia e tarso) e muito menos para a dança de corte. Mas há algo que torna ainda esta corte com cerca de 100 milhões de anos tão exclusiva. Ora bem, a dança de corte é normal no comportamento dos insectos hoje em dia. Aliás, muitos Odonatas batem as asas com muita intensidade para despertar o interesse das fêmeas. Mas é rara nos fósseis mais antigos até hoje encontrados e analisados, entre eles está o caso de um insecto da ordem Hymenoptera, do Jurássico (período entre há cerca de 200 milhões de anos e 140 milhões) ou do Gyaclavator kohlsi no Eoceno (época que começou há cerca 55 milhões de anos e terminou há 36 milhões).

Neste caso, o Yijenplatycnemis huangi usou as tíbias, com dimensões entre 11 e 14 milímetros de comprimento, onde possuem o seu sistema auditivo. As suas tíbias são transparentes e revestidas por duas pequenas bandas castanhas e pigmentadas. Para chegar à cena que se vê dentro do pedaço de âmbar, os cientistas usaram como ponto de partida os machos dos actuais géneros Platycypha e Platycnemis, ambos da ordem Odonata. Mas há diferenças nas tíbias dos vários géneros. Por exemplo, o Platycypha tem as suas seis tíbias mais estendidas do que o Yijenplatycnemis huangi. E o Platycnemis tem a tíbia mais achatada e pequena.

Forma de olhos nas pernas

Vamos à acção. Durante a corte, as espécies do género Platycypha movimentam-se em direcção às fêmeas, estendem as tíbias e depois é só mostrar a superfície posterior da tíbia para um dar o último e derradeiro sinal de conquista. Também as espécies do género Platycnemis esticam as tíbias para se exibirem perante as fêmeas. Também se pode perceber que os machos e as fêmeas têm características diferentes – dimorfismo sexual. “Os machos exibem as pernas no voo agitado em frente às fêmeas antes de acasalarem”, lê-se no artigo científico. Como tal, as tíbias estendidas no bocado de âmbar parecem ser sinais desta dança de corte. “Estas tíbias expandidas no fóssil sugerem uma adaptação extrema ao comportamento da dança de corte”, refere ainda o artigo.

Além disso, os machos da espécie Yijenplatycnemis huangi têm uma mancha em forma de olho no meio das duas patas traseiras, como as borboletas têm nas suas asas os ocelos (manchas que pela sua forma se assemelham a olhos). As borboletas usam os ocelos para distrair e afastar os predadores. Nos Yijenplatycnemis huangi também se suspeita que possam ser utilizados para afugentar os predadores, e não para atrair as fêmeas. Portanto, usaram estas pequenas manchas para afastar os predadores e conseguirem fazer aquilo que lhes interessava: conquistar a sua cara-metade. Outras das suspeitas suscitadas por este fóssil é que a tíbia alongada tenha feito com que os Odonatas voassem muito lentamente.

E hoje quantos insectos há desta ordem a que pertencem os exemplares no âmbar? Existem cerca de seis mil espécies a nível mundial, muitas das quais encontram-se em perigo de extinção ou pelo menos vulneráveis. Esta, sim, uma cena que se aproxima mais de um filme de terror.

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