Detroit contra todos ou a cidade que se tenta reerguer

A cidade que nos anos 50 era o centro da indústria automóvel, mas que em 2013 declarou falência, ensaia agora uma retoma baseada na aposta no empreendedorismo.

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É preciso sair do open space de mais de 300 metros quadrados e entrar na pequena sala de reuniões que está ao lado para conseguir encontrar nos escritórios da Skidmore Studio alguns vestígios do tempo em que a empresa atingiu o ponto mais alto da sua história. É aí que estão emolduradas, de forma discreta, algumas das ilustrações de modelos automóveis da Ford, General Motors e Chrysler feitas por este estúdio de design nos anos 60 para servirem de material de publicidade. Nessa altura, a Skidmore, fundada em 1959 em Detroit, era uma referência junto dos gigantes da indústria automóvel instalados na cidade quando estes queriam mostrar ao mundo os seus novos modelos e os negócios corriam bem. “Eram tempos diferentes”, explica Mark Ostach, um dos funcionários. “Na altura tínhamos 70 pessoas e trabalhávamos quase só para a indústria automóvel. Agora somos entre 15 e 20, conforme o volume de encomendas, e trabalhamos principalmente para os sectores do entretenimento e para restaurantes.”

Não se pense contudo que o tom seja de lamentação por esta evidente perda de importância da empresa, ocorrida em paralelo com o progressivo declínio de Detroit durante o último meio século. Pelo contrário, o que este especialista da área comercial revela é mesmo um grande entusiasmo com aquilo que se passa actualmente na empresa. Porque a Skidmore está no centro daquilo que alguns acreditam – e Mark Ostach é certamente um dos que acreditam – poder ser o momento do ressurgimento de Detroit como uma das grandes cidades dos Estados Unidos, deixando finalmente para trás décadas de conflitos raciais, fuga de população, declínio económico e crises nas finanças públicas que culminaram com a declaração de falência do município em 2013.

Dois anos antes dessa falência, num passo bastante arriscado, os donos da Skidmore Studio decidiram mudar a empresa dos arredores para o centro de Detroit, num percurso que era precisamente o contrário do realizado por centenas de outras empresas nos anos anteriores. Arrendaram o quarto andar do histórico Madison Theatre Building, um edifício comprado e remodelado pelo empresário Dan Gilbert, conhecido em todos os Estados Unidos por ser o fundador da Quicken Loan, uma instituição de crédito que empresta dinheiro de um dia para o outro, e o dono da equipa de basquetebol Cleveland Cavaliers, actual detentora do título do campeonato profissional norte-americano.

Gilbert decidiu no início desta década investir no sector imobiliário de Detroit, a sua cidade natal. Diz que quer ajudar a cidade a reerguer-se, tornando-a num centro tecnológico e tem tido algum sucesso a atrair outras empresas. Comprou vários edifícios, onde se instalaram empresas que, ou nunca tinham estado em Detroit, ou que decidiram voltar depois de alguns anos de ausência.

Outro milionário nascido em Detroit, Mike Ilitch, dono do franchising Little Caesars Pizza e das equipas de basebol e hóquei no gelo da cidade, também fez parte, antes da sua morte em Fevereiro, deste esforço de redinamização do centro urbano, comprando e reabilitando alguns edifícios históricos que estavam ao abandono. Transferiu igualmente a sede da sua própria empresa para o centro de Detroit.

No Madison Theatre Building, estão, para além da Skidmore Studio, espaços de cowork actualmente a serem usados por 300 pessoas e projectos como o da agência de formação Grand Circus que dá cursos para quem quer tornar-se um profissional na área da tecnologia. Em baixo, junto à rua, há um novo café, apostado em aproveitar toda estes novos jovens clientes que estão no centro da cidade. Do lado oposto da Avenida Woodward, está uma loja da Nike aberta no ano passado.

Por momentos, caminhando por um ou dois destes quarteirões do centro da cidade, é possível ver Detroit como mais uma das grandes cidades norte-americanas. Mas, ao fim de algum tempo, principalmente quando se passeia pela ruas do centro durante as horas de ponta, é impossível não fazer uma pergunta: afinal onde estão as pessoas? Os prédios remodelados, as novas empresas e os novos estabelecimentos comerciais que surgiram durante os últimos dois anos não conseguem esconder o facto de a cidade ser ainda grande de mais para o número de pessoas que tem.

Esta sensação de estarmos perante uma cidade vazia confirma-se quando se olha para as estatísticas. De acordo com os dados dos censos dos Estados Unidos, foi nos anos 50 do século passado que a população de Detroit atingiu o seu máximo, com número de habitantes a ultrapassar os 1,8 milhões, assumindo-se como a quarta maior cidade dos EUA, apenas atrás de Nova Iorque, Los Angeles e Chicago. No final de 2015, não ultrapassava os 677 mil, uma redução de 63% em seis décadas, deixando de constar, pela primeira vez desde 1920, na lista das 20 maiores cidades do país. Tendo a actual dimensão da cidade sido definida no momento em que atingiu o seu auge económico e populacional, é natural que agora, com quase três vezes menos pessoas, a sensação seja de vazio. Um vazio muito difícil de preencher.

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Antiga fábrica da Packard: o crescimento da indústria automóvel foi explosivo entre os anos 20 e 50 do século XX mas a automação e os números da importação levaram o sector a desacelerar Joshua Lott / Reuters

Subúrbios cheios e ricos, a cidade vazia e pobre

Para perceber o que aconteceu a Detroit durante estas décadas, primeiro é preciso saber o que é a 8 Miles Road. Para além de ter dado um nome a um filme, esta rua de 33 quilómetros de cumprimento constitui a fronteira não oficial que separa a cidade dos seus subúrbios. A norte, nos subúrbios, vive uma população maioritariamente branca e mais rica, existem vários grandes centros comerciais, continuam a funcionar a maior parte das fábricas da indústria automóvel e o número de habitantes continua a crescer. A sul, está a cidade de Detroit propriamente dita, com muitas fábricas antigas que deixaram de funcionar, uma população mais pobre e maioritariamente negra e muitos, muitos imóveis por utilizar.

Em bairros como Brightmoor, que em tempos estavam repletos de habitações térreas, com relvados bem tratados à sua volta, o que se vê agora é uma sequência impressionante de habitações abandonadas e enormes descampados, em que por cada dez espaços vazios não se encontra mais do que uma casa com sinais de presença humana. Na Baixa, onde estão os prédios mais altos, há ainda vários edifícios abandonados e parques de estacionamento ao ar livre sobredimensionados, que ocupam os espaços onde foram feitas demolições dos prédios mais degradados, um deles onde antes estava a segunda maior loja dos Estados Unidos.

Esta separação entre os subúrbios cheios e ricos e a cidade vazia e pobre não aconteceu toda de uma vez nem apenas por um único motivo. Foram antes 60 anos em que tudo o que possa acontecer de mal a uma cidade aconteceu mesmo em Detroit.

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Há hoje uma sequência impressionante de habitações abandonadas e enormes descampados Rebecca Cook / Reuters

O crescimento, entre os anos 20 e os anos 50 do século passado, tinha sido explosivo e concentrado num único sector de actividade. As empresas do sector automóvel estavam a produzir para o país inteiro e precisavam urgentemente de mão de obra, o que fez com que milhares de negros residentes nos Estados segregacionistas do Sul se deslocassem para Detroit à procura de trabalho em melhores condições.

Os problemas começaram quando, a seguir à II Grande Guerra, o sector automóvel desacelerou. O desemprego subiu e começaram a tornar-se cada vez mais evidentes as tensões raciais existentes também na região. Em Julho de 1967, a bomba explodiu e, depois de um incidente inicial com a polícia, a população saiu à rua e começou a pilhar lojas e a destruir edifícios. Morreram 43 pessoas e 1189 ficaram feridas, num dos maiores motins da história dos EUA.

A partir desse momento, acentuou-se de forma brusca a fuga da população mais rica e predominantemente branca para os subúrbios. Se, antes dos motins, o ritmo de saída já era de cerca de 20 mil ao ano, logo em 1967, Detroit perdeu 67 mil habitantes e em 1968 mais 80 mil.

O êxodo prolongou-se nos anos seguintes, ajudado pelos efeitos negativos da automação e das importações de automóveis no número de empregos na indústria e pelo agravamento dos problemas associados à guetização da população negra. Apesar de sucessivas tentativas de reanimação económica e social, a imagem de Detroit como um cidade insegura e sem perspectivas de emprego foi ganhando força.

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Em 2009, a crise financeira internacional e o impacto imediato no sector automóvel e na construção piorou a situação. Detroit declarou falência em 2013 Joshua Lott / Reuters

Em 2009, a crise financeira internacional e o impacto imediato que teve no sector automóvel e na construção piorou ainda mais a situação, apesar de a Administração Obama ter respondido com uma ajuda de larga escala a grandes empresas como a Ford ou a General Motors.

Esta nova crise económica acabou por ser de mais para as contas do próprio município, que para além da redução inevitável das receitas, sofreu também com anos consecutivos de má gestão e corrupção: Kwame Kilpatrick, que foi presidente da câmara entre 2002 e 2008, está neste momento a cumprir uma pena de cadeia de 28 anos.

Em 2012, o município começou a ter dificuldades sérias em cumprir com todos os seus pagamentos, acumulando atrasos. E em 2013 declarou falência, a primeira vez que uma grande cidade dos Estados Unidos chegou a esta situação. Os credores acabaram por ficar sem a maior parte do dinheiro que tinham emprestado, assumindo, em conjunto com as seguradoras, perdas de 7 mil milhões de dólares (cerca de 6,5 mil milhões de euros).

Aí, acredita-se, a cidade bateu no fundo, com os serviços públicos a chegarem a níveis inimagináveis. Em 2013, o tempo médo de resposta a uma chamada urgente por parte da polícia era de meia hora, 40% dos sinais de trânsito estavam permanentemente fora de serviço e as taxas de insucesso escolar superavam em três vezes a média nacional.

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Mural em Vernor Highway, a sul do centro de Detroit: há uma clara separação entre os subúrbios cheios e ricos e a cidade vazia e pobre Rebecca Cook / Reuters

Preços baixos e falta de escolas

Com uma história destas, que motivos pode haver para acreditar que Detroit pode recuperar e voltar a atrair pessoas e empresas? Afinal de contas, por que é que empresários de dimensão nacional como Dan Gilbert estão a investir na cidade e a convidar outros a fazê-lo?

“Estes empresários são de cá e querem reanimar [a cidade]. Mas é claro que os preços baixos representam uma grande oportunidade. Nós, agora, começámos a vender Detroit como a cidade com os preços mais baixos dos Estados Unidos, e está a resultar”, afirma Mark Denson, director na agência governamental que tem a missão de promover o crescimento económico na cidade. O valor médio de uma casa em Detroit é actualmente de 42.300 dólares, quando a média nacional está nos 178.600 dólares.

A lógica da estratégia de retoma é a de que, sendo tão barato comprar uma casa ou alugar um escritório ou uma loja, os investidores nunca correm o risco de falhar muito e tem um rácio custo/oportunidade que pode ser atractivo. Além disso, como resultado da forma como foi negociado o processo de falência, a cidade ficou com um fundo que lhe permite realizar investimentos ou atribuir benefícios fiscais que reanimem a economia. Isso explica em grande parte como é que algumas das iniciativas na área da promoção do empreendedorismo estão no terreno e também porque é que investidores como Dan Gilbert decidiram voltar.

“Quando os empreendedores começarem a ter sucesso, haverá outros que vão querer juntar-se. Depois vão chegar as empresas maiores”, diz, esperançado, Mark Denson, que destaca o facto de 2016 poder vir a ser, embora ainda não haja números finais disponíveis, o primeiro ano em que não se regista uma diminuição da população.

Será que só isto será suficiente para garantir o ressurgimento de uma cidade que há mais de 60 anos está a cair? Os mais críticos duvidam da qualidade de investimentos baseados fundamentalmente na disponibilidade de espaço a preços baixos e questionam-se sobre o que irá acontecer quando se esgotarem as verbas disponíveis para o investimento público.

Entre os moradores de Detroit, não é fácil encontrar quem tenha muitas certezas em relação a um regresso da população ao centro. Michael Turay, de 44 anos, apesar de ainda trabalhar no centro de Detroit, nos serviços de administrativos da equipa de basebol da cidade (conduzindo um Uber nos tempos livres para reforçar os rendimentos), foi um dos que se mudaram para os subúrbios assim que teve oportunidade. Diz que no seu antigo bairro, o espírito de ajuda era maior. “Quando eu saía de casa, os meus pais sabiam que os vizinhos também tomavam conta de mim, não me deixavam fazer asneiras”, afirma. No entanto, logo a seguir, coloca de parte a hipótese de voltar porque, para os seus filhos, é melhor estarem onde estão, as escolas são melhores.

Em relação à economia, diz que “as coisas estão melhores ultimamente, há mais empregos”. “Uma pessoa que saiba de tecnologia ou de engenharia encontra um emprego com facilidade, para os outros não é tão fácil”, afirma.

Matt Sealy, dono de uma empresa com cinco trabalhadores que produz materiais e instrumentos para a construção civil e muito crítico da política económica seguida pela Administração Obama, reconhece ainda assim que os últimos anos foram de melhoria em Detroit, com “algumas histórias de sucesso”. “Mas ainda há muitas coisas por resolver. Muito crime, muitas casas abandonadas. E até que as escolas sejam atractivas para as famílias, ninguém vai querer viver no centro”, defende.

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"Começámos a vender Detroit como a cidade com os preços mais baixos dos Estados Unidos, e está a resultar”, afirma Mark Denson Jeff Kowalsky/ reuters

A mesma ideia é salientada por Hassan Bazzi, que colabora com uma organização que tem como missão ajudar imigrantes a lançarem os seus projectos de empreendedorismo. “O mais importante agora em Detroit são as escolas. É verdade que temos millennials que estão a vir para cá, e isso é bom, mas quando começarem a querer ter filhos, também vão querer boas escolas”, diz.

A falta de escolas, tanto públicas como privadas, é um dos vários problemas que mostram como, apesar dos sinais positivos no comércio, empreendedorismo e imobiliário, os caminhos até a um verdadeiro ressurgimento de Detroit estão ainda cheios de obstáculos e armadilhas. Entre os seus habitantes, a perspectiva de novas dificuldades não constitui uma surpresa. É mesmo já encarada com um certo orgulho, como uma imagem de marca da cidade, que a distingue de todas as outras. Que leva, por exemplo, a que as T-shirts mais populares sejam, a par das dos clubes desportivos, as que dizem simplesmente “Detroit contra toda a gente” (“Detroit vs Everybody”).

Com uma taxa de desemprego que é ainda das mais altas do país, um rendimento per capita que é menos de metade da média nacional, números mensais de homicídios que se destacam entre as maiores cidades dos Estados Unidos e uma economia ainda muito dependente de uma só indústria, se Detroit conseguir concretizar uma recuperação com base no empreendedorismo e na tecnologia, concorrendo com cidades como Nova Iorque e São Francisco, poderá não ser “contra toda a gente”, mas será contra todas as probabilidades.

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