Para eleger o líder de Hong Kong há mais polícias do que eleitores

Quase três anos depois dos protestos que paralisaram o território, elege-se o chefe-executivo, mas a escolha é feita verdadeiramente por Pequim.

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Manifestação em Hong Kong no sábado a denunciar o processo eleitoral ALEX HOFFORD/EPA

A eleição deste ano do chefe-executivo em Hong Kong era vista até há pouco como um marco no desenvolvimento político do território. Este seria o ano de aplicação do sufrágio universal, tal como previsto pela Lei Básica, a mini-constituição que regula os assuntos internos de Hong Kong. Mas, na verdade, a escolha do principal dirigente volta a estar nas mãos de um pequeno comité de representantes muito próximos do Partido Comunista Chinês, o que significa que há apenas um voto que conta – o do Presidente chinês, Xi Jinping.

São cerca de 1200 os cidadãos com direito a votar nas eleições deste domingo, para escolher o chefe do Governo local de um território com mais de sete milhões de habitantes. Até os polícias convocados para proteger os locais de voto são em maior número que os eleitores, de acordo com o jornal independente de Hong Kong South China Morning Post.

As eleições acontecem menos de três anos depois dos maiores protestos populares em Hong Kong desde o fim do domínio britânico, em 1997 - a chamada "revolução dos guarda-chuvas". Em causa estava, precisamente, a escolha que se faz este domingo.

Recuemos ao Verão de 2014, quando foi conhecido o quadro que iria regular a eleição do chefe-executivo. A expectativa era de que fosse concedido o sufrágio universal. Porém, a directiva revelava um entendimento diferente desse conceito – os eleitores poderiam escolher o próximo chefe do Governo, mas apenas entre candidatos pré-seleccionados por um comité muito restrito e próximo de Pequim.

A frustração do sector pró-democrático saltou para a rua, ancorada na força de protesto dos estudantes de liceu e universitários. Durante quase três meses, no final de 2014, algumas das principais avenidas do centro da metrópole foram ocupadas por dezenas de milhares de manifestantes, que usavam guarda-chuvas para se protegerem do gás lacrimogénio e dos bastões da polícia de choque.

Os protestos foram abandonados sem que as exigências de mais direitos políticos tenham sido escutadas, mas permanece uma ferida aberta na sociedade de Hong Kong. A reforma proposta por Pequim foi rejeitada pela Assembleia Legislativa, mantendo tudo como estava para as eleições deste ano. A mensagem do sector pró-democrático é clara: “A proposta daria a esta eleição uma legitimidade falsa e ao chefe-executivo um mandato falso”, disse ao New York Times Nathan Law, um dos líderes dos protestos.

O comité de cerca de 1200 representantes de sectores económicos, profissionais e sociais de Hong Kong terá de escolher entre três nomes, mas o desfecho parece já determinado. A grande favorita de Pequim é Carrie Lam, a “número dois” do Governo anterior, com uma longa carreira na burocracia local, mas muito pouca popularidade entre os milhões de eleitores que não votam. Quem lhe faz frente é o ex-secretário das Finanças, John Tsang, que, apesar de fazer parte do establishment pró-China, tem recolhido o apoio do sector pró-democrático. Por fora corre o ex-juiz Woo Kwok-hing, conhecido pelo discurso crítico em relação a Pequim e cuja grande questão é saber se irá recolher pelo menos um voto. Alguns grupos de activistas anunciaram protestos para este domingo, mas não é esperada uma adesão muito elevada, diz a imprensa local.

A palavra de Pequim

Nas últimas semanas, Tsang tem levado a cabo uma verdadeira campanha eleitoral, organizando comícios, anúncios publicitários e actos públicos para tentar mostrar aos membros da comissão que recolhe mais apoio popular do que a adversária. Uma sondagem realizada pelo South China Morning Post atribui a Tsang uma vantagem de mais de 14 pontos sobre Lam. Também nas redes sociais é visível o apoio que reúne o ex-secretário das finanças.

“Fazer campanha tornou-se parte da cultura política de Hong Kong, há uma expectativa de que é necessário ganhar os corações e as mentes das pessoas, mesmo que seja uma ilusão de democracia”, explicou à Quartz o deputado pró-democracia Dennis Kwok. Porém, no final, o critério que mais importa é a lealdade ao Governo de Pequim.

A percepção de que a China está a pôr em causa o caminho de Hong Kong rumo à democracia está a dar origem a um novo radicalismo, sobretudo entre os mais jovens. Até há poucos anos, a clivagem política mais comum opunha o campo pró-democrata – que defendia o aprofundamento e alargamento dos direitos civis e políticos do território, sem pôr em causa a soberania chinesa – aos sectores pró-Pequim, que privilegiam a manutenção do status quo.

Ganhou força entretanto uma nova corrente, conhecida como “localismo”, que defende a independência total de Hong Kong em relação à China, potencialmente com um estatuto semelhante ao de Singapura, por exemplo. Os seus membros são sobretudo das gerações mais jovens e que partilham uma identificação mais forte com Hong Kong do que com a China, ao contrário dos seus pais.

A manifestação mais relevante deste fenómeno aconteceu nas eleições para a Assembleia Legislativa, em Setembro, para a qual foram eleitos quatro deputados membros de um partido independentista. Num claro desafio ao establishment, os novos deputados radicais negaram-se a prestar o juramento de tomada de posse, fazendo referências a uma “Hong Kong independente” e utilizando linguagem ofensiva para referir a China. Na sequência de uma intervenção sem precedentes do Congresso Nacional do Povo, dois deputados acabaram por ser impedidos de tomar posse.

A iniciativa de Pequim insere-se numa tendência de interferência chinesa nos assuntos internos de Hong Kong que muitos vêem como preocupante e que passa, por exemplo, pela intervenção dos serviços de segurança continentais no território, como aconteceu com a detenção recente de um milionário chinês e com o desaparecimento de um grupo de editores de livros.

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