A União Europeia sozinha perante si própria

Um ataque terrorista no centro de Londres a poucos dias do “Brexit”. Um Presidente americano que ignora a relação transatlântica. Um Presidente russo que ameaça militarmente as suas fronteiras. Uma vaga nacionalista. A Europa conseguirá resistir? Hoje em Roma vai tentar dizer que sim.

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Sala Horácios e Curiácios do Capitólio romano, onde os 27 líderes se vão encontrar Reuters

Sessenta anos são apenas uma piscadela de olho da História? Ou podem continuar a marcar o seu rumo por mais 60? Por estranho que pareça, a resposta a esta pergunta está nas mãos de muitos dos líderes europeus que hoje se reúnem em Roma na mesma sala do Capitólio que, há 60 anos, viu nascer a Comunidade Económica Europeia. Contra a História da Europa e das suas eternas “guerras civis”. Eram apenas seis. Hoje serão 27. Acabam de perder a sua “metade” atlântica, cujo papel foi determinante nas guerras que levaram, finalmente, à paz no continente. O destino europeu não está determinado à partida. A pergunta ainda não tem resposta.

A integração europeia nasceu da necessidade de pôr termo à doença fatal do nacionalismo e às suas formas extremas, que se traduziram em duas guerras mundiais trágicas e destruidoras. Resultou da vontade política de superar os nacionalismos de meia dúzia de visionários e da determinação americana de pôr fim às guerras europeias cujo destino lhe coube resolver. Nasceu sob a sombra da guerra. A presença dos mísseis SS-20 soviéticos e dos seus quatro mil carros de combate às portas de Berlim foi, até à implosão do império soviético, a mais forte das razões para a manter unida sob a protecção americana. Sobreviveu. Unificou a Alemanha e o continente, alargando até às suas fronteiras a democracia e a paz. Criou uma moeda única para garantir que a Alemanha unificada mantinha o seu compromisso europeu. Viu agora emergir uma Alemanha cujo papel dominante a torna decisiva para o futuro de uma ideia que serviu, há 60 anos, para a integrar no campo das nações civilizadas.

Um mundo irreconhecível

A União Europeia está mergulhada na maior crise da sua vida, que é o resultado de múltiplas crises. A deriva americana, o nacionalismo agressivo da Rússia, o abandono de um país grande e ainda poderoso (Reino Unido), que deixa atrás de si um vazio difícil de preencher. Com as suas democracias em crise, desafiadas pelo populismo e pelo nacionalismo, e com o apoio dos cidadãos ao projecto europeu longe dos seus melhores dias. Com uma crise de refugiados e a instabilidade nas suas fronteiras, num mundo em que a emergência de grandes potências (nem todas democráticas) põe em causa a supremacia do Ocidente, e ainda sem conseguir superar uma crise do euro que causou divisões profundas entre os seus membros.

Não tem de se envergonhar do seu passado. Atravessou várias crises mas cumpriu o seu dever histórico em cada um dos momentos em que foi desafiada. Integrou os países do Sul quando se livraram das respectivas ditaduras. Alargou-se à dimensão do continente, enterrando a velha ordem de Ialta. Criou um espaço sem fronteiras onde os europeus circulam como um só povo. Transformou-se na mais poderosa força de “mudança de regime”, muito mais eficaz do que as guerras de Bush, “obrigando” os países que queriam aderir — e queriam todos — a sujeitar-se às regras da democracia e da economia de mercado.

Hoje, muitos destes ganhos estão postos em causa. Os países do Leste desafiam (alguns) as suas regras democráticas e temem uma nova divisão entre o Ocidente e o Leste. A crise do euro deixou atrás de si marcas profundas, que levarão tempo a sarar. A forma como foi gerida abriu uma ferida entre o Norte e o Sul, muito longe de estar curada. As suas democracias são desafiadas por movimentos populistas e nacionalistas cada vez mais fortes, que reagem contra a globalização, seja ela na forma do aumento do desemprego ou da chegada de novos imigrantes. Nalgumas, os partidos centrais correm o risco de implosão. Falta, como diz António Vitorino, um “centro político” capaz de lhe dar um sentido comum. Ontem, os líderes europeus foram recebidos pelo Papa Francisco, que, sinal dos tempos, é o primeiro chefe da Igreja de Roma que vem de fora da Europa.

Somatório de pequenas exigências

Vão aprovar hoje uma Declaração de Roma que é pouco mais do que uma série de compromissos, que levaram tempo e esforço a negociar para responder a todas as pequenas e médias reivindicações nacionais. Na noite de quinta-feira, a Polónia ainda ameaçava estragar a festa, com exigências que os seus parceiros dizem que já estão contempladas: o papel dos parlamentos nacionais e uma referência à NATO. Os gregos também não estavam satisfeitos, embora o primeiro-ministro, Alexis Tsipras, tenha avisado que não tenciona bloquear os trabalhos. Com sete anos de resgates e de austeridade pura e dura, Atenas gostaria de um pouco mais de compreensão nas negociações da próxima tranche, que estão a correr mal. Tentou trocar uma coisa pela outra, mas aparentemente já desistiu. A Grécia é, talvez, a mais dramática das demonstrações da importância que os povos ainda atribuem à integração europeia. Os gregos não querem sair nem do euro nem da Europa. A referência explícita às “várias velocidades” na primeira versão do texto, que Paris e Berlim defendem, está agora um pouco mais diluída. “Agiremos em conjunto, em diferentes ritmos e intensidades, enquanto avançamos na mesma direcção.” Mas o princípio está lá. A declaração elege quatro compromissos fundamentais: a segurança, a prosperidade, a Europa social e um maior protagonismo internacional.

A metade atlântica

Roma ocorre três dias antes de Londres accionar oficialmente o processo de saída da União Europeia. “É um fracasso e uma tragédia”, diz Jean-Claude Juncker. O presidente da Comissão não está enganado. É muito mais do que a saída de um país poderoso, que sempre foi um trouble maker da integração europeia. Sê-lo fazia parte do seu principal papel europeu: garantir o equilíbrio entre as potências continentais e manter o laço transatlântico. Vai muito mais longe do que as guerras económicas ou as irritações de Bruxelas. É a “metade” atlântica da Europa que é amputada, exactamente no momento em que Donald Trump anuncia o fim da política europeia da América desde a II Guerra. Theresa May é a intérprete de um daqueles momentos da História em que um acontecimento não previsto nem desejado pode abrir as portas a uma brusca mudança de rumo. David Cameron “resolveu demonizar a Europa perante os britânicos, para depois lhes pedir que votassem por ela”, lembrava recentemente António Vitorino.

Angela Merkel tem um objectivo imediato: manter os 27 unidos face ao “Brexit”. Berlim também quer uma Europa mais forte em matéria de segurança e defesa, alterando uma das características mais relevantes da sua inserção europeia. A chanceler percorreu um longo caminho de aprendizagem desde a altura em que votava ao lado dos “países emergentes” no Conselho de Segurança da ONU (por exemplo, na intervenção na Líbia), para a compreensão de que a Europa está ameaçada a leste e a sul e que já não pode virar a cara para o lado. Vladimir Putin foi o factor decisivo para a fazer compreender o mundo em que vivia. François Hollande despede-se do Eliseu, depois de um mandato em que não conseguiu fazer o que prometeu aos franceses. A necessidade de manter a ilusão do eixo Paris-Berlim foi mais forte do que a sua promessa de contrariar a austeridade alemã. Foi um aliado fiel de Obama e um aliado indispensável da chanceler na crise ucraniana.

Há 62 anos

Em Messina (Sicília), há 62 anos, os representantes dos seis países europeus que tinham fundado a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço mais o Reino Unido reuniram-se para tentarem lançar um novo projecto de integração, desta vez assente na economia. A Comunidade Europeia de Defesa, lançada em 1950, tinha fracassado. As discussões eternizaram-se. O representante britânico decidiu abandonar a reunião, acreditando que já não havia qualquer entendimento possível. Enganou-se, como hoje sabemos. A Europa foi sempre feita assim: longas discussões, cedências de parte a parte, até encontrar um terreno comum. É este o desafio que volta a enfrentar. Como diz o vice-presidente da Comissão, o holandês Frans Timmermans, a Europa tem de evitar “a terrível ressaca do nacionalismo” se quer garantir um futuro decente para os europeus. A tarefa parece ciclópica. Mas continua a não haver alternativa.

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