Jornalismo mágico

Os relatos de Em Viagem pela Europa de Leste são um testemunho imprescindível, não só para compreender a história do século XX, mas também para confirmar a genialidade de Márquez.

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Márquez encarava o jornalismo como uma arte tão nobre como a escrita de romances Eliana Aponte/REUTERS

No tempo em que Gabriel García Márquez era jornalista, antes de Cem Anos de Solidão e de tudo o que aconteceu depois, antes do Nobel, da fama e da glória, quando escrevia peças a três pesos, para diversas publicações, febrilmente, com a promessa de mais e mais trabalho, no tempo em que lia av idamente Faulkner, Virgínia Woolf e Kafka e enchia as páginas dos que viriam a ser os seus grandes romances, nesses longínquos finais dos anos 50 do século XX, quando a agitação na Europa atraía a atenção dos americanos, tanto nos Estados Unidos como na América Latina, ele, Garcia Marquez, atravessou o Atlântico e visitou os misteriosos e convulsos países que tinham passado para lá da ameaçadora “cortina de ferro” que, segundo as suas palavras …”não é uma cortina nem é de ferro… é uma barreira de pau pintada a vermelho e branco como os anúncios das barbearias.”

Os textos que produziu na altura sobre as suas experiências na Alemanha Oriental, na Checoslováquia, na Hungria, na Polónia e na União Soviética estão agora reunidos, em edição portuguesa, no volume Em Viagem pela Europa de Leste.

García Márquez fazia parte do grupo de escritores e jornalistas de Barranquilha que fervilhava de entusiasmo e de agitação política, de confronto de ideias e de discussões acesas. Quando partiu para a Europa para escrever sobre o que se passava entre o Ocidente e a poderosa União Soviética, embarcou numa aventura que antecipa a acção de um romance como O Espião que Saiu do Frio. de John Le Carré.

Márquez conta como decidiu partir para a Alemanha Oriental a partir de Frankfurt. Acompanhado por amigos de ocasião — Jacqueline, uma francesa de origem indochinesa, e Franco, um italiano de Milão — fizeram-se à estrada pelo “corredor” que os levaria a Berlim Oeste e daí, se o conseguissem, a Berlim Leste. A partir do momento em que iniciaram a viagem, viram-se obrigados a lidar com as surpresas próprias de um território totalmente desconhecido, com sucessivas barreiras policiais, esperas infindáveis em postos fronteiriços desertos, incerteza, burocracia kafkeana, quilómetros e quilómetros nas auto-estradas desertas, (mandadas construir por Hitler), ao longo de noites insones e o permanente confronto com uma realidade absurda e de difícil compreensão, numa atmosfera surreal que atraiu imediatamente o escritor.

Em Berlim, o Muro ainda não existia mas as diferenças, as tensões, a desconfiança estavam definitivamente instaladas. No texto intitulado “Berlim é um disparate” Márquez conduz o leitor por uma teia intrincada de disposições teóricas — de um lado o sistema soviético e do outro, o capitalista, por vezes à distância da largura de uma rua — onde “nada é completamente verdade”. Em Leipzig faz notar que a ordem pública na Alemanha Oriental se parece com a da Colômbia no tempo da perseguição política e recolhe os testemunhos de estudantes que afirmam que, ali, não existe socialismo, que ninguém trabalha com entusiasmo e que o povo não vê o desenvolvimento da indústria pesada — implementada pela URSS — como prioritária, uma vez que os bens de primeira necessidade são inexistentes.

(De que serve a glória do país se não é possível comprar um par de sapatos? Por que razão consegue a URSS mandar um homem à Lua mas não é capaz de resolver os problemas do alojamento e da alimentação? Os mais novos questionam-se, desejosos de fazerem parte da sociedade de consumo.)

Na Checoslováquia, as censuras ao regime, principalmente por parte de estudantes, que não se conformam com a censura na Cultura, são bastante mais relevantes e evidentes do que, por exemplo, na sombria Hungria, fechada sobre si própria, num estado de letargia perigoso. Márquez mostra o seu agrado pelo ambiente vivido em Praga, com muita gente a afluir a teatros e cafés, numa “ ordem natural, sem polícias armados” e a ausência da sensação de se ser espiado pelos serviços secretos. Mais tarde, na Polónia, notará um comércio extremamente pobre, com excepção de luxuosas livrarias, e faz referência à dignidade dos polacos que reconstroem Varsóvia, diligentemente, numa réplica fiel à cidade medieval, arrasada durante a guerra. Com Gomulka de novo no poder — antes do seu progressivo conservadorismo — a actividade política, principalmente nas Universidades, é intensa: uma “ebulição histérica” como refere o autor.

No entanto, depois da Polónia e da Checoslováquia, países mais ocidentalizados, Márquez mergulha na URSS e na sua vastidão desolada, com os seus tremendos contrastes, os seus 105 idiomas, incontáveis nacionalidades e um gosto acentuado pelo colossal, pelo monstruoso. É aí que participa num festival literário e descreve, com admiração irónica, a eficiência mastodôntica da organização, a qual, por um lado, mantém uma vigilância neurótica em relação aos mais ínfimos detalhes mas se perde em infindáveis mecanismos burocráticos, no exacto momento em que algo sai da bem oleada normalidade da máquina do partido.

García Márquez afirmou repetidamente, ao longo da vida, que era essencialmente um jornalista e que tinha sido nesse ofício que aprendera a escrever. Na verdade nunca abandonou totalmente o registo jornalístico e vale a pena recordar que, enquanto trabalhava no El Espectador de Bogotá — textos reunidos mais tarde em Relato de um Náufrago — estava também a finalizar Ninguém escreve ao Coronel e A Hora Má: o Veneno da Madrugada. Tal como o seu grande amigo Vargas Llosa — que depois deixou de o ser, por razões nunca inteiramente esclarecidas — Márquez encarava o jornalismo como uma arte tão nobre como a escrita de romances. Para ele, tanto no jornalismo como na literatura, a fronteira entre realidade e ficção, entre o mito e a história era flexível e permitia — ao contrário dos ditames do “ new journalism “ preconizado por Tom Wolfe, por exemplo — expandir a capacidade da imaginação, na observação dos acontecimentos, das pessoas e dos lugares.

Os relatos de Em Viagem pela Europa de Leste são um testemunho imprescindível, não só para compreender a conturbada história do século XX, mas também para confirmar a genialidade de Márquez, a sua curiosidade irrequieta, o seu olhar arguto, a fluidez da sua linguagem e a naturalidade com que estabelece ligações com as pessoas com quem se cruza. Mesmo no relato circunstancial, Márquez introduz o seu cariz “mágico”, seguindo de perto todos os acontecimentos, sem nunca descurar uma observação intensa, crítica e bem-humorada.

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