Em Nova Orleães pode-se ficar morto por muito tempo

South And West: From a Notebook recupera notas de uma viagem a Sul da escritora Joan Didion, em 1970, para tentar entender o que era a América. Mais de quatro décadas depois, no Sul continua a prevalecer preconceito, segregação, conservadorismo. O Sul resiste ao contágio da Costa Leste.

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É como uma serpente a deslizar em curvas em campo verde. Amarela, baça, uma linha cada vez menos perceptível em direcção à foz, como se a terra se dissipasse de súbito nesse percurso. Àquela luz, o caudal parece de enxofre ou saibro, sombreado a escuro, diluindo-se depois numa massa líquida compacta até desaparecer no Golfo do México. É uma visão do ar. O Mississippi, o maior rio dos Estados Unidos, como que a rondar para sempre e ameaçando alastrar, sem margem definida num pântano gigante e, se houvesse dúvidas, a lembrar que a natureza manda. Aquele rio é a materialização dessa certeza permanente que talvez justifique o fatalismo endémico de que fala Joan Didion ao caracterizar o modo de ser da gente de Nova Orleães. Ali, é impossível esquecer, por um dia que seja, que o selvagem determina o humano, e a devastação não é um acidente mas uma consequência de habitar aquela terra, condicionando toda a percepção de vida e de morte. Uma viagem por Nova Orleães talvez deva começar por aí. 

“Em Nova Orleães, em Junho, o ar tem o peso de sexo e morte, não morte violenta mas por decadência, deterioração, apodrecimento, morte por afogamento, febre de etiologia desconhecida. O lugar é fisicamente escuro, escuro como o negativo de uma fotografia, escuro como um raio-X: a atmosfera reflecte a luz, mas suga-a ao ponto de objectos fortuitos brilharem com uma luminescência mórbida.” A descrição abre o livro mais recente da jornalista e escritora, vencedora do Pulitzer com O Ano do Pensamento Mágico (Gótica, 2006), e é o primeiro desde Blue Nights, o volume de memórias publicado em 2011 onde Didion reflectia sobre a morte da filha ocorrida em 2005 e sobre o seu próprio envelhecimento. South And West: From a Notebook, agora editado nos Estados Unidos pela Knopf, recupera notas de viagem que nunca chegaram a ser transformadas em textos jornalísticos e correspondem a dois tempos e duas geografias. A primeira, a mais longa e a que constitui a essência do livro, tem como título Notes on the South e resulta de um périplo de um mês por três estados do Sul: Louisiana, Alabama e Mississippi. A segunda, California Notes, é uma reflexão sobre a Califórnia natal de Joan Didion. Nasceu em Sacramento, perto da Baía de S. Francisco, em 1934, e viveu naquele estado até 2005, quando se mudou para Nova Iorque. Em 1976 o editor da Rolling Stone pediu-lhe que fizesse a cobertura em São Francisco do Julgamento Hearst. Patty Hearst, filha do magnata Randolph Hearst, fora sequestrada aos 19 anos e acabou por se aliar aos seus raptores, participando em assaltos à mão armada. Nenhuma destas duas ideias de reportagem se concretizou. São o miolo de South and West. “Eu tinha a teoria de que se pudesse entender o Sul, iria entender alguma coisa sobre a Califórnia, porque muitos dos colonos da Califórnia vieram da fronteira Sul”, afirmou em 2006 numa entrevista à Paris Review sobre os motivos que a levaram a sair de Los Angeles em Junho de 1970 em direcção a Nova Orleães. Seguia de uma terra que vivia no presente e a pensar no futuro para outra que não se libertava do seu passado.

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Mau prenúncio

“A ideia era começar em Nova Orleães e a partir de lá não tínhamos plano”, escreveu sobre essa viagem que fez com o marido, o também jornalista e dramaturgo John Gregory Dunne (1932-2003) e a primeira impressão ao aterrar na maior cidade do estado do Louisiana foi a da “liquidez hipnótica da atmosfera” e uma sensação que se instalou e começou aprofundar-se como uma semente de mau prenúncio quando também se aprofundava essa incursão pelo Sul. Apesar de matizes progressistas, notava a prevalência do preconceito, da segregação racial e de classe, de um conservadorismo que resistia ao contágio do Norte e da costa Oeste. Sobre o que lhe pareceu então um imperativo improvável, o impulso para rumar a Sul na tentativa de entender uma génese, pessoal e colectiva, afirmou: “Eu tinha apenas uma percepção sombria e sem forma, um sentido que me invadia de vez em quando e que eu não poderia explicar de forma coerente, o de que há alguns anos o Sul e particularmente a Costa do Golfo tinham sido para a América o que as pessoas ainda diziam que a Califórnia era mas que a Califórnia me parecia não ser: o futuro, a fonte secreta de energia malévola e benevolente, o centro psíquico. Não quero falar muito sobre isso.”

Lemos isto quatro décadas depois, no futuro das palavras de Didion, no presente de um país dividido entre o progressismo das Costas Leste e Oeste e o discurso segregacionista da Administração que governa a América desde as eleições de 8 de Novembro de 2016, e que teve a sua génese a Sul, o berço da escravatura naquele território e de uma sociedade feudal que está na literatura de Faulkner ou Eudora Welty e mantém vivos muitos desses traços. O livro de Didion, que veio colmatar em parte a ausência de obra nova da autora de 82 anos, está longe de ser um inédito sobre os tempos actuais, mas testemunha a presença desses tiques feudais num modo de vida que quis tentar compreender. “Quando penso agora em Nova Orleães recordo sobretudo a sua densa obsessão, a preocupação vertiginosa com raça, classe, património, elegância e ausência de elegância…” Era 1970.

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O medo e o interdito ou a festa interminável. O contraste, a dança e o cântico das ruas, sempre que o clima dá um pouco de trégua. Ou seja, sempre que não chove copiosamente ou faz um calor de não se respirar

O apelo da decadência

Quase 50 anos depois estamos como ela a Sul, num território que fica dois metros e meio abaixo do nível do mar. Junto à agua turva do Mississippi, a cidade olha-se de cima, um intenso aglomerado colorido, mesmo na sua penumbra, que parece afundar-se em terra. É uma margem artificial, recentemente delineada após o furação Katrina, que devastou a cidade e matou quase duas mil pessoas em Agosto de 2015.

Não é Julho. É Abril de 2016. O voo chega a Nova Orleães desde Washington D. C. com escala em Atlanta, capital da Geórgia, e o aeroporto com maior tráfego dos EUA. A janela do avião revelara a luz filtrada e o céu sem azul do Sul do Mississippi. Onde está o céu quase turquesa de que falava Tennessee Williams em O Eléctrico Chamado Desejo? Era num crepúsculo de Maio, talvez explique a diferença dessa ficção para esta realidade em que cai uma chuva miúda que torna o calor ainda mais pegajoso, tremendo contraste com a neve, horas antes, 1700 quilómetros a nordeste, junto à Casa Branca. Não há muitos planos. O tempo, ou melhor, o clima, manda. Não é preciso ficar muito tempo para perceber como é fácil os planos em Nova Orleães, tal como as suas casas, ficaram alagados e afundarem-se na lama, serem feitos em pedaços”, refere escritor Nathaniel Rich (n. 1982), nova-iorquino a viver em Nova Orleães, no prefácio de South and West, lembrando o desabafo justamente de Tennessee Williams antes do dramaturgo partir para Nova Iorque: “Esta vida é apenas desintegração.”

Não foi isso, no entanto, que o levou lá. Há uma ideia de Sul que faz com que muitos continuem a chegar. Há sobretudo homens à espera, encostados a carros, ao que calha para aliviar o peso do corpo. Estão prontos a levar quem chega. O único conselho ao chegar é mesmo apanhar um táxi e pedir para parar apenas no French Quarter. A decisão foi outra: ir de autocarro. Entre uma opção e outra estava muito mais em jogo do que uma hora e meia de diferença para fazer os 25 quilómetros do percurso. “Eu queria apenas saber o que as pessoas do Sul pensam e fazem”, justificou Joan Didion a alguém que lhe perguntou o que queria dali. Mas muitos anos depois, a minha razão para seguir num autocarro que só os locais usam era mais ou mesma, a que se junta outra com igual ou maior peso: era incomparavelmente mais barato. “São dois dólares”, disse o motorista, um negro de idade indefinida, 30, 40 anos, magro, olhar tranquilo, sorriso perplexo quando deixou sair a pergunta “porque vai aqui?”

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“Aqui”, um autocarro velho, metal ferrugento, de um azul desbotado. Por cada fissura entra água. Os bancos de veludo estão ensopados e cheira a uma mistura ácida de odores humanos. “Sente-se por perto”, continua, olhos pelo retrovisor, “a sua paragem é a última.” São três da tarde; há três ou quatro passageiros, funcionários do aeroporto de lancheira a tiracolo e cansaço indisfarçado. Olham as mãos. A paisagem está vista.

É um caos urbanísticos que os primeiros metros do trajecto não revela. Depois das árvores, de um verde frondoso, em passeios largos junto ao aeroporto Louis Armstrong entra-se por uma via rápida e depois na Napoleon Avenue. Edifícios novos, guras, barracas, casas com janelas e portas entaipadas desde o furacão Katrina, pilares que sobraram de prédios destruídos, muros grafitados, mato, madeira apodrecida pela humidade inclemente. Gente que deambula, lenta, entre destroços e outros a correr apressados para não deixar ir o autocarro que leva ao centro. Entre o destruído e o reconstruído pós-Katrina, o transporte público leva os que nunca se restabeleceram: operários pobres, toxicodependentes, prostitutas, ex-presidiários numa espécie de uniforme reconhecido pelos locais. Branco e bege.

Nova Orleães, ou NOLA, como é conhecida, continua a ser chamada de capital nacional do homicídio nos Estados Unidos e é uma das cidades com maior incidência de crime. É servida por dois estabelecimentos prisionais, um deles, a Louisiana State Penitentiary, tem 6 300 detidos é a maior prisão de segurança máxima do país. Chamam-lhe Angola por ficar numa antiga fazenda de escravos maioritariamente de origem angolana. “Diz-se que o centro da cidade de Nova Orleães é o bairro mais encarcerado na cidade a mais encarcerada no estado mais encarcerado na nação mais encarcerada no mundo”, lê-se em Unfathomable City, A New Orleans Atlas (University of California Press, 2013), da jornalista e escritora Rebecca Solnit. “Isso significa”, continua, “que partes consideráveis de sua população vivem algures, nas penitenciárias, na sua maioria rurais, por todo o estado. Tanto a prisão de seres humanos como a prisão do Rio Mississippi através de diques e escoadouros são tentativas de controle e contenção que fracassaram ao longo dos séculos. Mas os sistemas persistem na Louisiana - que foi, como a Austrália, fundada como lugar para os condenados.” No século XVI, tentar resistir à natureza por ali era pena pesada. E resistir passou a ser outra forma de viver por ali.

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O autocarro segue. Eis, pois, o Louisiana, sintetizava Solnit, “onde até mesmo o rio foi preso e preso, e agua ainda flui, a resistência ainda flui, a comunicação ainda flui entre Nova Orleans e as prisões, onde a liberdade não é totalmente condenada, não a qualquer preço”.

Todos os lugares sentados se vão preenchendo, ninguém reclama da água, ninguém se olha nos olhos. Há a mesma indolência de quem esperava clientes no aeroporto e a que se há-de ver em cada homem ou mulher sentados nos degraus de uma casa, de um parque. Subúrbio e urbano encontram-se nesse modo de estar, de ser, um balanço lento.

“Em Nova Orleães, os velhos sentados à frente das casas e dos hotéis em St. Charles Avenue, mal balançavam. No [French] Quarter vi-os novamente (junto com crianças desoladas de cabelos compridos), sentados em varandas com tábuas de engomar atrás, balançando suavemente, às vezes não se balançando, mas apenas olhando. Em Nova Orleans eles dominaram a arte de permanecer imóveis”, notou Joan Didion. O exemplo de St. Charles ou do Quarter pode estender a muitos outros cantos ou às muitas cidades que compõem a grande cidade, separadas por barreiras artificiais ou naturais ou unidas pelas mesmas vias. Há gente que nunca se encontra e mora na mesma estrada, longa, que atravessa barros ricos e bairros pobres. St. Charles é uma. Mas há Canal e St. Claude. “Não passe desta rua”, avisa o empregado de um hotel. Porquê? “Melhor não querer saber. Mata-se e rouba-se por tudo.” A diferença é sempre entre estar do lado de cá ou do lado de lá. Entre perspectivas.

Os contrastes

O medo e o interdito, ou a festa interminável. O contraste, a dança e o cântico das ruas, sempre que o clima dá um pouco de trégua. Ou seja, sempre que não chove copiosamente ou faz um calor de não se respirar. É o “encanto libertino” de que seduziu Tennessee Williams e sobre o qual escreveu também em Um Eléctrico Chamado Desejo (Relógio d’Água, 2013) quando descrevia a esquina de uma rua num bairro pobre da cidade, sublinhando um lirismo de decadência. “Quase podemos sentir o respirar cálido do rio castanho por trás dos armazéns fluviais que exalam suaves aromas a banana e a café. Tal atmosfera é igualmente reforçada pela música de artistas negros num bar próximo. Nesta zona de Nova Orleães há quase sempre, ao virar da esquina, ou algumas portas rua abaixo um pequeno piano a ser tocado com fluência apaixonada por dedos negros. Este ‘Piano Melancólico’ traduz o espírito da vida que aqui decorre.”    

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É o passado sempre a espreitar. Agora não são apenas dedos negros. São de gente de todas as raças e nacionalidades e estão em pianos, saxofones, acordeões, trompetes, guitarras. Chegaram a Nova Orleães sem planos ou, tenho planos, deixaram-nos ir por água abaixo. A Sul, Didion não tinha planos além de Nova Orleães. Era essa a ideia inicial a determinar as que se lhe seguissem. Já acontecera antes como lembra ainda Nathaniel Rich. “Era a ideia de William Faulkner quando desistiu do seu emprego de chefe dos correios na Universidade do Mississippi e se mudou para Nova Orleães porque desprezava receber ordens, e de Tennessee Williams, que escreveu no seu diário ‘Aqui certamente é o lugar para que fui feito…’.” Ele procurava a “desordem violenta” para alimentar a sua vida e por consequência a sua arte. Nova Orleães dava-lhe isso. Aos 24 anos instalou-se no French Quarter, teve várias moradas. Um do prédio em St Peter Street, no coração do bairro mais turístico da cidade, assinala que foi ali que começou a escrever Um Eléctrico

Faulkner vivera antes no mesmo bairro, em 1925, e consta que foi lá que arranjou inspiração para o seu romance Mosquitos (D. Quixote, 2013). A casa em Jackson Square está recuperada. O piso superior mantém o quarto, a biblioteca privada. Em baixo é uma livraria dedicada à literatura, especialmente à literatura do Sul dos Estados Unidos e aos escritores que se renderam a esse território. Estão lá a cadeira e a secretária onde Faulkner. Tudo recuperado e pintado de fresco, fachada de cor viva, após a destruição do Katrina.

“Nessa altura pensou-se que tudo tivesse ido para sempre”, refere Joseph, inglês com sotaque latino. Fuma um cigarro à porta da William Faulkner House. “Fugi, como muita gente, para Houston. Vivi lá um ano e voltei à procura da minha casa. Encontrei-a sem nada. Tinha dois pisos. A água levou até o telhado. Agora vivo lá outra vez.” Faz uma pausa. “Não fui só eu quem se mudou. O crime também saiu daqui. Houston tornou-se mais violenta. Mas parece que está tudo a regressar. Não sei. Como tudo em Nova Orleães, o crime vai e vem, como os furacões.”

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Logo após o furacão, em 2005, uma carta de um jornalista, Chris Rose, tornou-se viral. Nela, ele tentava retratar uma essência. "Provavelmente já sabem que conversamos de forma cómica e ouvimos música estranha e comemos coisas que se as encontrassem no vosso quintal contratariam um exterminador para as retirar de lá”; “Dançamos mesmo se não houver rádio, bebemos em funerais, falamos muito e rimos muito alto (…) mas tentaremos não vos julgar enquanto estivermos na vossa cidade. Toda gente ama a sua casa, sabemos isso, mas nós amamos o Sul do Louisiana com uma ferocidade que roça o patológico. Às vezes enterramos nossos mortos em camisolas da LSU [Lousiana State University]. Muitas vezes não fazemos sentido.”

Como notou Didion no regresso a casa, como notam todos ao voltar aos seus lugares quando esse lugar não é Nova Orleães, “o passado não passa tão depressa” por ali. A expressão é de Bob Dylan que se fixou nos cemitérios como uma metáfora local. “A primeira coisa que se nota sobre Nova Orleans são os terrenos enterrados - os cemitérios”, disse numa entrevista tantas vezes citada pelos habitantes de NOLA que a sua origem parece perdida. Dizia ele que são uma das melhores coisas que existem por ali. “Sepulturas gregas, romanas - mausoléus sepulcrais e palacianos feitos sob medida (…), sinais e símbolos da decadência oculta - fantasmas de mulheres e homens que pecaram e que morreram e agora vivem em túmulos. O passado não passa tão depressa aqui. Pode-se estar morto por muito tempo.”

Volta-se ao início da viagem de Didion, à ideia de que o Sul, a começar por Nova Orleães, encerraria o futuro da América. O maléfico e o benigno. Quando o avião levanta e a cidade volta a ser uma miragem cortada pela ponte de 38 quilómetros que atravessa o lago Pontchartrain, junto ao Golfo do México, esquece-se a cidade mais suja do país, violenta. Há a memória viva dos sabores doces e picantes da comida, do som do bounce, a música local que nasceu nos bairros sociais destruídos pelo Katrina, espécie de hip-hop, da liberdade que se sente nas ruas do Quarter, onde se anda, como em quase nenhum lado da América, com uma cerveja na mão, das conversas de fim de tarde no Carroussel, o bar do Hotel mais literário, o Monteleone. Na sua partida, Didion recordava outra coisa, uma frase de uma das pessoas com quem falou. “O Sul tem uma dívida para com o Norte… despedaçou a União… e agora só o Sul pode salvar o Norte”. Foi em 1970, faz quase 50 anos. Mas só agora lemos na letra de Joan Didion.

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