Um ensemble em que Ken Vandermark é apenas mais um

Shelter junta em palco alguns dos mais notáveis nomes do jazz actual. Em Lisboa e Portalegre, veremos um quarteto em que a hierarquia foi abolida.

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Na maioria dos projectos em que Ken Vandermark (ou qualquer outro músico de jazz contemporâneo) toca há um líder. Em Shelter não. No ensemble que o saxofonista norte-americano partilha com o seu conterrâneo Nate Wooley (trompete), com o holandês Jasper Stadhouders (guitarra e baixo eléctricos) e o australiano Steve Heather (bateria) não existe qualquer forma de hierarquia. Essa é, talvez, a maior singularidade e o grande desafio na formação deste quarteto. “Quando estou a liderar um grupo e componho a maioria dos temas, tenho uma ideia mais clara do que procuro musicalmente e é muito mais fácil definir a estética da banda”, compara Vandermark em conversa com o PÚBLICO. “Mas num grupo como este, em que os quatro decidem que música tocar, como compor, como organizar a música, é preciso colaborarmos mesmo para soarmos a um ensemble e não um grupo diferente em cada tema.”

Escutando o disco homónimo do quarteto, acabado de lançar e com apresentação ao vivo esta quinta-feira na Zé dos Bois (Lisboa) e um dia depois na abertura do Portalegre Jazz Fest, é evidente que a diversidade de registos não é empecilho para a construção de uma identidade a quatro, antes sublinhando a porosidade de um som que tanto segue o trilho da música improvisada quanto se transforma numa linguagem próxima da música de câmara menos ortodoxa, aqui e ali acolhendo uma pulsação rítmica vinda do rock. É o reflexo de quatro personalidades bastante diversas, reunidas aqui a partir da vontade de Vandermark investir mais a fundo na sua relação com Stadhouders, depois de o ter chamado para o lugar de baixista na segunda vida do quarteto Made to Break, em que mandam as suas composições e uma relação intensa com a electrónica. “Aqui quis que ele tocasse guitarra, o seu instrumento principal”, reconhece. “Depois puxei o Nate Wooley, com quem também toco em duo, e o Jasper trouxe o Steve. Muito rapidamente percebemos que não seria a minha banda nem a do Jasper. Seria de todos.”

Vandermark, uma das figuras eminentes do jazz actual, contribui para o primeiro álbum do grupo com um tema mais introspectivo – “uma quase balada”, descreve – e duas composições que resultam da montagem de diferentes ideias. “Estou sempre a tentar perceber o que posso fazer de mais expansivo em cada contexto”, diz, “mas também me interessa trabalhar dentro dos parâmetros específicos de cada grupo". "A música que trago para esta formação tem esse lado muito pessoal, passa por conhecer bem os outros músicos, tentar adivinhar o que podem fazer, e depois nos ensaios, mas sobretudo nos concertos, tentarmos ir mais a fundo em cada uma dessas ideias", prossegue.

Embora não aconteça com os temas que compôs para o álbum dos Shelter, é frequente Vandermark acrescentar dedicatórias aos títulos dos temas dos seus projectos, mapeando um território de influências, de músicos a escritores e cineastas, cujo impacto no seu pensamento artístico exige reconhecimento público. Num dos álbuns do seu Resonance Ensemble, por exemplo, presta tributo a Michael Haneke, Thomas Bernhard ou Jean-Luc Godard. “A forma como Godard construía os seus filmes”, admite, “teve mais impacto na minha composição do que a maioria da música que ouvi nos últimos cinco anos": "Não havendo uma relação directa de causa e efeito nessas dedicatórias, aponto um caminho de criatividade que estou a seguir e que me dá pistas na forma de explorar ideias.” Os Shelter são, precisamente, mais uma prova de como a avidez exploratória é uma marca da sua criatividade.

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