Sobra fado a este romance

Demora até que Coração Mais Que Perfeito se liberte das fragilidades de um primeiro romance.

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Sérgio Godinho sacrificou a contenção nesta sua estreia no romance Nuno Ferreira Santos

Eugénia tem toda a tragédia e valentia para ser personagem de uma canção de Sérgio Godinho (Porto, 1945). Educada por uma mãe com muitas ausências, iniciou-se no sexo era adolescente com um tio médico; viveu uma paixão breve, fez um aborto que lhe ia sendo fatal, foi prostituta e conheceu o amor que lhe pareceu eterno mas acabou em suicídio; o dele, com uma faca eléctrica “enterrada no coração”. Chama-se Artur e era actor; ela chamava-lhe Eugene. É por aqui, pelo “fim” que toda a morte encerra, que começa Coração Mais Que Perfeito (Quetzal), primeiro romance de Sérgio Godinho.

Quem leu Vidadupla (Quetzal, 2014), o volume de contos com que se iniciou na ficção para adultos percebe de imediato que se sacrificou boa parte da contenção e se entra aqui por uma intimidade que, por mais que seja revelada ou desvelada, permanece esquiva. Eugénia, a mulher que escolheu a franqueza — “dava muito trabalho ocultar e mentir” — não parece ir além do superficial, ainda que isso contradiga a sua natureza. Nota ainda um muito maior uso do diálogo e a alusão quase ininterrupta ao sexo.

São decisões arriscadas da parte de um autor que apesar da experiência de escrita, se inicia agora no romance. Não andamos longe dos temas que têm sido tratados pelo Sérgio Godinho letrista, nem tão pouco pelo autor de contos: amor, morte, a sedução por uma espécie de vertigem, o medo, o sexo e uma perdição iminente. É como um fado a que o título alude. No caso, o fado, no sentido mais funesto ou fatídico, é a teia que envolve Eugénia; Eugénia que conhecemos enquanto “aranha viúva”, imagem repetida, metáfora recorrente, como um refrão, ladainha que tenta enredar também o leitor. 

É um romance escrito com recurso ao flashback e com um narrador omnisciente. Desde o momento em que encontra o seu “amor” morto, há um recuo no tempo. As personagens e as suas circunstâncias são dadas a conhecer numa sucessão de peripécias que têm Eugénia no centro. Não há segredo quanto as muitos factos futuros, mas há uma gestão no modo de os apresentar que confirma o que já se sabia: Sérgio Godinho é um contador de histórias com domínio da linguagem. Com essas ferramentas ele quer adensar um mistério, o mistério da intimidade e de uma morte, de como se sucumbe a um amor e se sobrevive à sua ausência. Só já muito próximo do fim, no entanto, parece soltar-se disso e é quando consegue melhor efeito, com uma poética que finalmente parece soltar-se do hiper-realismo, da aparente crueza das descrições de sexo, de um ritmo que é eficaz na narrativa breve, mas que se perde num romance onde a ambição era — ou parecia — maior.

E há mesmo momentos em que se sentem rimas, uma ou outra repetição que interferem no ritmo, e uma gestão oscilante dos recursos, como se tão depressa estivesse num registo hiper-realista como se caminhasse para a comédia negra. O teatro, a filosofia, a literatura, paixões das suas personagens, andam por ali, mas nunca se adensam. Servem para construir frases como esta: “O Teatro é o curto instante de um momento eterno!”, ou “A morte não é para sempre.” Outro detalhe em que se tropeça: embora não seja referido o tempo em que o romance decorre, tudo indica que o presente da acção coincida com o presente real. Se Eugénia tem uns quarenta anos no fim, o livro dificilmente escutaria conversas de adultos ao telemóvel na adolescência ou consultaria a net, também via telemóvel, para tirar dúvidas sobre os riscos de um aborto clandestino aos 19 anos. Isso numa altura em que sendo portuguesa, estaria ilegal em França.

Repete-se: perto do fim, muitas destas fragilidades diluem-se e o livro ganha o fulgor que não teve antes. Há um lirismo e um trabalho de linguagem que se ajustam mais a Sérgio Godinho, o contador de histórias, criador de personagens fortes, poeta que sabe captar como poucos qualquer coisa da essência e nostalgia portuguesas quando escreve uma canção. 

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