Bob Dylan, o fã de Amy Winehouse, o homem dos standards sem nostalgia

Numa rara entrevista, o músico fala do seu novo álbum, Triplicate. É o mote para uma viagem pela sua vida, para descobrir histórias de Sinatra e de Elvis. Um vislumbre de Bob Dylan, aos 75 anos.

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Dylan edita dia 31 de Março o álbum triplo Triplicate ROBERT GALBRAITH/REUTERS

Bob Dylan, o músico mítico, o Nobel da Literatura, conta o dia em que Frank Sinatra lhe disse que eram ambos “lá de cima”, das estrelas, por partilharem o mesmo azul nos olhos, ou aquele outro dia em que ele e George Harrison deixaram Elvis Presley pendurado. Fala longamente de como nada existe de nostálgico nas velhas canções a que tem dedicado os últimos álbuns, recorda a infância de Invernos glaciares e Verões escaldantes em Duluth, no Minnesota, e considera Amy Winehouse, de quem era grande fã, a “última individualista”.

O mote para a entrevista foi Triplicate, o terceiro álbum seguido, depois de Shadows In The Night e Fallen Angels, em que Bob Dylan dá a sua voz a standards da canção americana de décadas passadas. A nova edição, álbum triplo com lançamento marcado para dia 31 de Março, serviu para início de conversa e como guia da que se seguiu, mas sendo raras as vezes em que o bardo se dispõe a ser entrevistado Bill Flanagan, o jornalista que a conduziu em exclusivo para o site de Dylan, não perdeu a oportunidade. A longa entrevista é Dylan vintage, ou seja, revela um olhar sempre interessante, não raras vezes surpreendente, consciente do seu lugar no tempo, do tempo que passou e do que mudou com ele.

Flanagan pede-lhe que olhe para o jovem Dylan e descreva o que vê e Dylan responde como se falasse de outra pessoa. Ao ver-se a actuar há 50 anos, depara-se com “um rapaz encantado muito estranho, um performer muito sofisticado, com uma encruzilhada de música dentro de si, já pós-moderna": É uma pessoa diferente do que sou agora”. Teria de o ser, caso contrário não teria gravado as canções de Triplicate. "Significam muito mais para mim agora”, afirma, referindo-se a temas como September of my years, Stormy weather ou As times goes by. “Agora vivi-as, vivi através delas e compreendo-as muito melhor”, explica, destacando o “realismo directo” nelas existente e a sua “crença na vida de todos os dias, tal como acontecia no rock’n’roll dos primódios”.

Estas canções, interpretadas no seu tempo por Frank Sinatra, Nat King Cole ou pela orquestra de Tommy Dorsey, entre muitos outros, contêm para Dylan “a essência da vida”. Não pertencem ao passado. “São para o homem comum”, defende, e não precisam de ser resgatadas ao esquecimento. “Não mais do que eu tentaria resgatar Beethoven, Brahms ou Mozart”, diz. “Estas canções não estão escondidas atrás de uma parede ou no fundo do mar, estão aí a descoberto e qualquer um as pode descobrir. São verdadeiras. São libertadoras”, elogia.

No centro delas está Frank Sinatra, que cantou e foi o intérprete mais reconhecido da maioria das canções gravadas nos dois últimos álbuns e no que agora se anuncia. Dylan conheceu Sinatra num jantar em casa do cantor, para o qual fora convidado juntamente com Bruce Springsteen. Ficou a saber que Sinatra mal conhecia o seu repertório, mas que gostava de Forever young, e que havia algo que partilhavam. “Tu e eu, companheiro, temos olhos azuis, somos lá de cima”, disse-lhe apontando para as estrelas. “O resto destes vagabundos são aqui de baixo”, conta – “lembro-me de ter pensado que talvez tivesse razão”, acrescenta. Porém, olhando para o seu percurso, principalmente nos seus anos de maior efervescência criativa, não seria certamente para Sinatra que se viraria. Via-se mais próximo, por exemplo, de alguém como Ornette Coleman, de quem é grande admirador e com que partilhou amizade. “Enfrentou muita adversidade, os críticos estavam contra ele, os outros músicos jazz sentiam inveja. Estava a fazer algo tão novo e tão inovador que não o compreendiam. Não era diferente dos insultos que me eram dirigidos por fazer o mesmo tipo de coisas, ainda que com diferentes tipos de musica”.

Recusando a ideia de grandiosidade artística como algo perpétuo – “Se alguém atinge a grandeza, consegue-o por um minuto apenas, e toda a gente é capaz disso. A grandiosidade está para além do teu controlo” –, refere-se aos grandiosos que desapareceram em 2016 como “irmãos”. O entrevistador citara os nomes de Leonard Cohen, Muhammad Ali, Merle Haggard e Leon Russel. “Habitávamos a mesma rua e todos eles deixaram vazios os espaços que ocupavam. É solitária sem eles."

Entre os momentos em que Dylan é Dylan, no seu modo próximo do humor deadpan – não foi Elvis que faltou a uma sessão de estúdio marcada com ele e George Harrison, foram eles que deixaram Elvis pendurado, explica, sem mais –, sobressai o contador de histórias. Descobrimo-lo na descrição do “ar rarefeito” e do frio que, no Inverno, congelava o sangue no Minnesota do Sul em que cresceu, com mil lagos em redor e reservas índias nas redondezas. Nada, ainda assim, que modele um homem de uma forma particular. “As pessoas são basicamente iguais onde quer que vamos. Existe o bom e o mau na maioria das pessoas, independentemente do estado em que vivas."

No que diz respeito à música, à música moderna, entenda-se, deixa algumas sugestões. O álbum de versões Après, de Iggy Pop (maioritariamente cantado em francês), Here We Again, o tributo a Ray Charles assinado por Willie Nelson, Norah Jones e Wynton Marsalis, nomes soltos como Stereophonics, Valerie June e Imelda May. E o último álbum de Amy Winehouse. “Era um fã dela?”, pergunta Flanagan. “Completamente. Era a última verdadeira individualista."

Quanto ao que lhe ocupa o tempo nas longas viagens das suas digressões intermináveis, a resposta é, digamos surpreendente. Dylan passa as horas a ver, “todo o tempo, sem pausas”, I Love Lucy, a série dos anos 1950 protagonizada por Lucille Ball.

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