A arquitectura ao noir

O ornamento — o preto e branco, os detectives privados, os cigarros, as “femmes fatales”, os cabarets — não é crime. Mas parece sempre limitado a uma dimensão superficial.

Não se sai muito de uma dimensão “fotográfica” um tanto artificial: <i>Ornamento & Crime</i>
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Não se sai muito de uma dimensão “fotográfica” um tanto artificial: Ornamento & Crime
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Haverá alguma auto-ironia na escolha do título (que também reproduz o título de um manifesto do arquitecto austríaco Adolf Loos publicado no princípio do século XX), porque Ornamento & Crime, colocando-se deliberadamente sob os signos, visuais e narrativos, do film noir, enverga-os de uma forma que é acima de tudo ornamental. Não que o ornamento seja, aqui, “crime”, de tão assumido que é o exercício de reprodução de umas quantas características do “noir” (o preto e branco, os detectives privados, os cigarros, as femmes fatales, os cabarets), e de tão evidente que a função do exercício é constituir-se em código narrativo para falar de outras coisas — a arquitectura da cidade de Guimarães, o confronto entre o “histórico” e o “moderno” (e o “falso histórico” e o “falso moderno”), os negócios pouco claros do meio da construção civil, que é o ambiente em que o protagonista, o Detective Espada (versão aportuguesada do Sam Spade de Dashiell Hammett), se envolve.

Mas, não sendo “crime”, e sempre parcialmente redimido pela enorme auto-consciência que exibe, também raramente se torna “orgânico”, parecendo limitado a uma dimensão superficial, não importa quão farsante e ciente de si mesma.

Vale a pena referir que esta apropriação de códigos de género é um interesse reiterado por Rodrigo Areias, que já tinha algo de semelhante com o western em Estrada de Palha (filme sobre o qual Ornamento & Crime tem a enorme vantagem de dispor de um sentido de humor). E que a arquitectura é um tema que já tinha focado em outras ocasiões, como o documentário 1960, centrado em Fernando Távora (e é com uma citação de Távora usada em epígrafe que Ornamento & Crime abre).

Paradoxalmente, ou se calhar nada paradoxalmente, é quando o filme secundariza os enfeites do noir que se torna mais interessante: os momentos em que deixa os interiores, sai para a rua e lança as personagens em ruas do centro histórico de Guimarães ou em construções mais modernas. Não se sai muito de uma dimensão “fotográfica” um tanto artificial (os ângulos, as sombras) mas os efeitos de anacronia e anomalia (os modos do noir estampados numa cidade portuguesa contemporânea) resultam mais interessantes e mais produtivos, até como câmara de ressonância para as questões de política arquitectónica ou urbanística a que o filme alude. A isto acrescentaríamos um último ponto claramente positivo: o emprego que o filme faz de alguns actores portugueses relativamente subaproveitados pelo cinema, como Vitor Correia ou Ângelo Torres.

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