Tenham vergonha, senhores deputados

Legais ou ilegais, são negócios aviltantes que desacreditam a democracia portuguesa.

Na última sexta-feira, no Jornal Económico, o jornalista Gustavo Sampaio publicou um artigo onde demonstra que alguns dos nossos deputados continuam a usufruir de privilégios eticamente inaceitáveis para compor o ordenado ao fim do mês. Mesmo num país exaurido e sobreendividado, persistem os pequenos truques e as pequenas leis feitas à medida dos seus bolsos. Desde logo, o Estatuto dos Deputados admite o inadmissível: em Portugal, pode ser-se simultaneamente deputado da nação e trabalhar como advogado, consultor, administrador e até accionista de empresas que celebram contratos com entidades públicas. Só há uma restrição: os deputados não podem deter mais de 10% do seu capital social.

Como se já não bastasse este inconcebível estatuto, que é uma porta escancarada para todo o tipo de promiscuidade, Gustavo Sampaio ainda conseguiu encontrar oito deputados – quatro do PS e quatro do PSD, para a coisa ficar equilibrada – que nem essa modestíssima regra cumprem, e que ao mesmo tempo que circulam pelos corredores do Parlamento detêm participações superiores a 10% em empresas que andam a assinar contratos com entidades públicas. Vale a pena analisar dois dos oito exemplos citados no artigo, para que se perceba a gravidade do que está em causa.

Comecemos por Renato Sampaio, do PS, um dos principais fiéis de José Sócrates, que no final de 2014 até fez questão de simbolicamente sair a meio do congresso do PS que consagrou António Costa para ir à prisão de Évora visitar o seu velho amigo. Segundo o Jornal Económico, a mulher de Renato Sampaio possui 15% da empresa Nuno Sampaio – Arquiteto Lda (à Renascença, o deputado do PS garantiu que não são 15 mas 8%), estando os restantes 85% nas mãos do seu filho Nuno. Desde 2009, essa empresa obteve 15 contratos por ajuste directo com o Estado, num valor total de 716 mil euros. A tranche mais elevada – 204 mil euros – foi contratada (por ajuste directo, claro) em 2010, à boleia do saudoso Parque Escolar, para a elaboração do projecto de arquitectura de uma escola em Castelo de Paiva. Ah, como é bonito o amor paternal: o pai é deputado do PS; o filho ganha a vida a desenhar escolas públicas durante um governo do PS. Alguma incompatibilidade? Desde que papá e mamã tenham menos de 10% da empresa do filho, nenhuma.

E agora passemos ao PSD, num caso tão ou mais problemático, pois envolve o seu líder parlamentar, Luís Montenegro. Montenegro deputa e advoga, como a lei permite, possuindo 50% do capital social da sociedade de advogados Sousa Pinheiro & Montenegro (SP&M). Ora, entre 2014 e 2017 a SP&M obteve seis contratos por ajuste direto com entidades públicas. O valor dos contratos não é extraordinariamente elevado – 188 mil euros – mas a sua origem é extraordinariamente escandalosa: quatro vieram da Câmara de Espinho e dois da Câmara de Vagos. Ora, não só se trata de duas câmaras PSD, como Luís Montenegro foi presidente da Assembleia Municipal de Espinho entre 2009 e 2013. Quando questionado acerca destas pasmosas coincidências, Montenegro afirmou que o Estatuto dos Deputados apenas veda participações acima dos 10% em empresas de comércio ou indústria, o que não abrange uma sociedade de advogados. Por isso, garante, está “100% seguro” de que não há qualquer incompatibilidade. Talvez não haja. Mas é 100% óbvio que deveria haver. Tenham vergonha, senhores deputados: legais ou ilegais, isto são negócios aviltantes, que desacreditam a democracia portuguesa.

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