Prostituição, sexo, género e direito

É preciso que mulheres e homens constatem que a democracia portuguesa não permite que as velhas e ofensivas normas sociais de género obscureçam ou limitem a justiça.

Em Portugal, a prostituição não é ilegal. Nem relativamente às pessoas que pagam para que outras se prostituam, na maioria homens, nem às pessoas que se prostituem, na maioria mulheres. Porém, a intermediação lucrativa do sistema de prostituição constitui crime, o lenocínio.

Para intervir sobre a matéria, o Estado tem que respeitar a Constituição[1], a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem[2], a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres[3], e a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica ou Convenção de Istambul[4], que o vinculam a suprimir todas as formas de exploração da prostituição de mulheres, enquanto forma de discriminação em função do sexo, a promover a igualdade entre homens e mulheres, como tarefa fundamental do Estado, e a tomar as medidas necessárias para promover as mudanças nos padrões de comportamento socioculturais das mulheres e dos homens, tendo em vista erradicar os preconceitos, os costumes, as tradições e qualquer outra prática baseados na ideia da inferioridade das mulheres ou nos papéis estereotipados das mulheres e dos homens.

Nestes papéis estereotipados desiguais, ainda vividos por muita gente como um “destino social”[5], mas que o direito exige do Estado que erradique, se integra a real ou simbólica hierarquia de poder entre homens e mulheres, que, no caso da prostituição, as afeta de modo desproporcionado[6], e que implica a sua aceitação da supremacia dos homens com permanente disponibilidade para satisfação do desejo sexual de todo e qualquer um, que as queira a troco de dinheiro[7]. O que constitui uma das mais agressivas e arriscadas dimensões dos estereótipos de género, pela violência e o perigo de dano que permite[8], pelo que prejudica todas as mulheres e cada uma, constituindo assim, uma discriminação não apenas individual mas sistémica, apesar de haver pessoas que se prostituem por opção individual. Bastante menos, porém, do que as que se encontram no sistema de algum modo coagidas e sem força nem meios para o abandonar.

Por tudo isto, a prática da prostituição não corresponde a um contrato laboral ou de prestação de serviços “como qualquer outro”. E tendo também em conta por um lado, os limites dos direitos fundamentais e a proporcionalidade na sua aplicação[9], e, por outro, a coerência do Código Penal, que valora a proibição de discriminação sexual e a ofensa à igualdade de género como bens jurídico-constitucionais com dignidade de proteção penal[10], não pode a prostituição ser reconhecida pelo direito como trabalho, profissão ou atividade económica com proteção jurídica e social.

Acresce, que um tal reconhecimento poria em causa a criminalização do lenocínio, com o consequente reforço em Portugal de uma fileira comercial legitimada, nacional e multinacional, de aluguer de pessoas para a prática de sexo pago, deixando o Estado sem meios proporcionais para prevenir, em geral, a coação e o abuso sexual, bem como a vinda para o país de mulheres e raparigas menores[11] traficadas para fins de exploração sexual. Uma fonte autónoma e particularmente abjeta de violência contra as mulheres e crianças, que correspondem a 96% do total deste tráfico[12].

O Estado português está, assim, legalmente impedido de editar normas jurídicas que venham validar as normas sociais de género suscetíveis de agravar a situação de desigualdade entre mulheres e homens.

Mas também está vinculado[13] a promover a eliminação do sistema de prostituição, enquanto dimensão da discriminação contra as mulheres. Para o que aqui proponho a adoção de uma Estratégia Nacional integrada, cofinanciada pela União Europeia, que – sem afetar o atual estatuto de quem se prostitui porque quer - responda às necessidades de respeito, segurança, formação, emprego, proteção social, cuidados de saúde e alojamento das pessoas em situação de prostituição que queiram mudar de vida; assegure a ilegalização da prática de quem compra sexo e da publicidade relativa à prática de prostituição; aprofunde o regime jurídico do crime de lenocínio; reforce a educação sexual em meio escolar e de saúde; realize formação para aplicação adequada da estratégia proposta, e desenvolva campanhas comunicacionais adaptadas aos diversos públicos. Tudo precedido de estudo interdisciplinar, quantitativo e qualitativo, sobre o sistema de prostituição em todo o território, incluindo a caracterização e a análise detalhadas da situação de cada um dos três grupos que integram o sistema.

A aplicação de uma tal estratégia nacional permitirá, em minha opinião, que mulheres e homens constatem que a democracia portuguesa não permite que as velhas e ofensivas normas sociais de género obscureçam ou limitem a justiça que, visando a igualdade substantiva, lhes é devida pela sociedade, pelo Estado e por todos os seus Órgãos de Soberania[14].

[1] Art. 13º e 9º h).

[2] Art. 1º nº 1, 6º, 16º, 18º e 20º.

[3] Art. 6º e 5º a).

[4] Art. 12º nº 1.

[5] Bourdieu P (1999). A dominação masculina. Oeiras. Celta.

[6] Convenção de Istambul, Preâmbulo e artigo 2º nº 1.

Recomendação Geral CEDAW nº 28 - Obrigações Fundamentais dos Estados Partes:

https://drive.google.com/file/d/1bZY12oZUh2o39dG6qIL0Ycmn4kWXS-ymGQ09DwhjFW4/view, § 19.

Recomendação Geral CEDAW nº 19 - Violência contra as Mulheres:

https://drive.google.com/file/d/1VQVCOV2Vd_aGA8ANNyZHH-JstmPrMQX0mUZtXrz_zT8/view . § 21.

[7] RG CEDAW nº 19, §§ 11 e 12.

[8] RG CEDAW nº 28, §§ 16 e 22.

[9] Art. 29º e 30º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, face ao artigo 16º da Constituição.

[10] Art. 240º, 132º nº 2 alínea f) e crimes contra a liberdade sexual previstos no Código Penal.

[11] RG CEDAW nº 28, § 21.

[12] Relatório Global das NU sobre o Tráfico de Pessoas - 2016, P. 27.

[13] Por ex. Convenção de Istambul, art. 3º), RG CEDAW nº 28, § 23, e Agenda 2030 - ODS.

[14] RG CEDAW RG nº 28, §§ 17 e 33.

Jurista e ex-secretária de Estado para a Igualdade

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