Quando tem pressa, Ricardo nem pensa em usar as ciclovias

Os ciclistas já vêem cenários "impensáveis" como o pai que anda de bicicleta com o filho na Avenida da República, mas os erros de construção afastam novos adeptos das ciclovias.

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Nuno Ferreira Santos

O fundamentalismo não fala aqui. Há espaço para todos. “Os peões hão-de se habituar”, como os automobilistas já o têm vindo a fazer. Ricardo Ferreira e um amigo comentam a “extraordinária” viagem que ambos fizeram na Avenida Almirante Reis, ele a descer, o amigo a subir: não houve razias, quase todos os carros mudaram de via para os ultrapassar. Não ouviram buzinas a reclamar. 

“É óbvio que não é assim em toda a cidade, nem todos os dias”, faz o reparo. Ricardo, web designer de 44 anos, é voluntário da associação para a Mobilidade Urbana em Bicicleta (MUBi) desde a sua fundação, em 2009. Vive em Oeiras e durante anos deslocou-se para o trabalho, em Lisboa, de bicicleta. Não tem carro. “Nem sinto falta”. 

Ricardo acha que a cidade vive o melhor momento para circular de bicicleta. Como meio de transporte alternativo aos carros? “Para lá caminhamos”. Ainda há muito a fazer. Um passeio pelo centro da cidade ilustra-o.

Nota que existe um esforço para controlar o trânsito. Há vias em que, pelo reduzido tamanho das vias, os automobilistas são obrigados a abrandar. Só a presença de ciclistas ali ao lado os faz ter tento no acelerador. Mas nem todos sabem ultrapassar, abrandando e deixando uma distância lateral mínima de 1,5 metros.

Ainda assim “diria que a maior parte dos condutores são pessoas cuidadosas. Pelo menos não querem problemas”. Um dos turistas com quem fez um passeio de bicicleta pela capital disse-lhe mesmo: “Drivers are very gentlemen” (inglês para “os condutores são muito cavalheiros”). O principal problema está no estacionamento.

É difícil encontrar fórmulas perfeitas: se as ciclovias desniveladas são “presas fáceis” do estacionamento (como acontece na Avenida Fontes Pereira de Melo), as vias ao nível do passeio são terreno fértil para peões (exemplo da Avenida Duque de Ávila). A 21 de Fevereiro, foi aprovada por unanimidade em Assembleia Municipal a recomendação do Bloco de Esquerda que pedia o estudo e implementação de soluções para garantir “melhores condições de segurança para os troços de ciclovia contíguos ao estacionamento de viaturas”.

Na Avenida da República, Ricardo olha para a distância entre o estacionamento e a ciclovia e não tem dúvidas que está nos conformes da lei. Mas volta a mesma história: quando estacionados depois do limite do lugar de estacionamento, as portas abertas chegam à ciclovia, correndo o risco de abalroar um ciclista.

Segundo os últimos dados da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, de Janeiro a Julho de 2016, 1029 ciclistas ficaram feridos (62 graves) e 23 pessoas morreram na sequência de acidentes, em todo o país. Uma média de quase seis acidentados por dia.

“Não são raras as histórias de ciclistas que sofrem acidentes porque os carros estão na ciclovia. Se há esse risco, muita gente prefere a estrada”, diz Ricardo. Ele próprio o prefere.

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Ciclovias estreitas

A ciclovia da Avenida do Brasil é, para o ciclista, o pior exemplo da cidade: é “estreitíssima, está no passeio e é continuamente interrompida”. “As melhorias são evidentes” nas novas construções, como a do Eixo Central. Ver um pai e um filho na Avenida da República, como vê agora, era “um cenário impensável há meia dúzia de meses”. Mas “há erros crassos que persistem, porque quem as faz não sabe o que é andar de bicicleta na cidade todos os dias”.

A largura das ciclovias é um problema que identifica constantemente: são tão estreitas que comprometem, ou impedem mesmo, a ultrapassagem de bicicletas.

No Eixo Central, os mais de 2,5 quilómetros inaugurados em Janeiro, ilustram a “inabalável questão de não querer reduzir o estacionamento”. E isso é feito à custa de ciclovias estreitas, “sacrificando a segurança e o conforto dos ciclistas”, nas palavras de Ricardo.

Ao longo da Avenida da República, sempre que existe uma paragem de autocarro, a ciclovia é interrompida. Segundo o código, os ciclistas deviam desmontar e levar a bicicleta à mão naqueles poucos metros. “Obrigaria a desmontar de dez em dez metros”. Ninguém o faz.

Noutros casos, os intervalos nas ciclovias obrigam os ciclistas a parar e procurar a continuação, nem sempre óbvia. Conhecer os percursos, criar hábitos, é a chave: “Não é assim tão mau, se soubermos o que fazer. Faço sempre o mesmo caminho”.

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Por isso é que diz que estes percursos não são pensados para quem faz a vida de bicicleta. “É difícil encontrar um caso mais gritante” que na Avenida da República, a chegar a Entrecampos. A pista é ladeada por jardim. “É bonito. É pensado para passear. Não para quem quer ir às compras nos eixos laterais ou ir aos serviços - como é que sai daqui?”

Os próprios raios de curvatura impedem grandes velocidades. Em alguns casos não dão margem de manobra para fazer a curva sem entrar no passeio ou entrar na via em sentido contrário. “Somos forçados a travar bastante”, o que muitas vezes não acontece no outro lado da estrada. Ricardo nota o “perigo” de alguns cruzamentos no Eixo Central, em que as curvas possibilitam uma entrada rápida dos carros noutra via. “Entram, nas nossas costas, a uma velocidade muito superior àquela a que nós circulamos.”

“Quando tenho pressa, nunca vou pelas ciclovias”, confessa o ciclista. “Se andar a 25 quilómetros por hora é um perigo vir por aqui”. As pessoas metem-se na via. “Só o tempo que ficamos a fazer ligações entre vias cicláveis, parados em paragens que os carros não têm… Vamos pela estrada.” As alterações de 2014 ao Código da Estrada equiparam, quando se trata de prioridades, os velocípedes aos automóveis e motociclos. O mesmo código descreve o ciclista como um utilizador vulnerável no espaço rodoviário.

O voluntário da MUBi acha que as soluções são simples: mais educação, mais sinalização. “Bom senso, acima de tudo. Há problemas sim, mas “seriam facilmente ultrapassáveis se as pessoas cumprissem o código da estrada”, acredita.

Hoje existem aproximadamente 70 quilómetros de vias cicláveis concluídos. A Câmara quer chegar aos 210 quilómetros até 2018 e o projecto das bicicletas partilhadas está prestes a arrancar, no seguimento da política autárquica de reduzir o número de carros na cidade. Nalguns casos, o crescimento da rede faz-se por ciclovias, segregadas da via rodoviária. Noutros vão ser criadas vias partilhadas entre ciclistas e automobilistas, como já existe nas laterais da Avenida da Liberdade. 

A intenção do pelouro da Estrutura Verde da autarquia, liderado por José Sá Fernandes, é “unir a cidade inteira” e acabar com a ideia de que circular em duas rodas na cidade é “para heróis e desportistas”.

Se há uns anos lhe perguntassem se Lisboa era uma “cidade amiga das bicicletas”, Ricardo recusaria o termo. Hoje, está mais confortável com a designação. 

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