Leonardo Jardim, “a competência em pessoa” sob a capa da austeridade

A qualidade do técnico português rompeu fronteiras e está a dar que falar na Europa. O PÚBLICO foi à procura dos testemunhos de antigos jogadores: “Sabia o que queria em cada jogo”.

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No Mónaco, no jogo com o Manchester City GUILLAUME HORCAJUELO/EPA
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No Sp. Braga, frente ao Benfica, em 2011 PEDRO BENAVENTE WAPA/NFACTOS

Sem hesitações ou favores, Leonardo Jardim é, para André Marques, o melhor treinador com quem o defesa internacional português alguma vez trabalhou. O lateral esquerdo recua apenas para abrir um parêntesis e evitar injustiças ou ingratidões, colocando Paulo Bento no mesmo plano — “Será sempre especial pois foi ele que apostou em mim, para além de ser um grande treinador” —, mas o simples facto de merecer um comentário tão espontâneo permite aferir bem da cotação do actual técnico do Mónaco.

Descobrir qualquer coisa de verdadeiramente inédito da faceta do técnico madeirense pode esbarrar em dois obstáculos: o carácter hermético do timoneiro do actual líder da Liga francesa e todo o percurso entretanto exaustivamente explorado nos media, revelado à medida que Leonardo somava subidas e cumpria objectivos que o levaram do Santacruzense ao trono do principado do Mónaco, numa cavalgada vertiginosa e inexoravelmente marcada pelo sucesso.

“O trajecto de Leonardo Jardim não tem nada de surpreendente para mim. Foi buscar-me à Grécia para o Beira-Mar e marcou-me pela forma de trabalhar, pela capacidade de definir os momentos de brincadeira e construir uma boa relação com o grupo, mas sobretudo pelos pormenores que muitos desvalorizam, mas que são essenciais na hora de fazer a diferença”, declara André Marques, explicando sem medo de poder ser desmentido a história das “brincadeiras”.

“É verdade que passa uma imagem demasiado séria, sempre com uma cara fechada. Mas posso garantir que se trata de uma pessoa totalmente diferente no seio do grupo de trabalho… simpática e amiga”, justifica-se, sem confundir os momentos de maior à-vontade com o trabalho puro e duro.

Matéria em que Rui Rego, guarda-redes que Jardim encontrou no Desportivo de Chaves, na II divisão B, e que levou para Aveiro, para a I Liga, concorda com o antigo companheiro beiramarense. “Confirmo em absoluto que a imagem transmitida para o exterior é fachada. Claro que para fora é preciso ter alguns cuidados, especialmente quando se está a construir uma carreira. Mas com os jogadores teve sempre uma postura equilibrada: brinca quando tem que brincar e é sério quando tem que ser. A relação sempre foi de grande respeito”, vinca o guarda-redes, actualmente no Merelinense.

“Quando chegou a Chaves só o conhecíamos de o ter defrontado como treinador do Camacha. Era natural que tivéssemos as nossas dúvidas. Mas a liderança notou-se logo. Quando disse que ou chegava à primeira divisão em cinco anos ou regressava à Madeira para dar aulas conseguiu a nossa atenção. Não era muito normal e rapidamente percebemos que falava a sério. O resto é do domínio público”.

“Atento a todos os aspectos”

Os métodos, sobretudo a análise dos adversários e as apresentações pormenorizadas, magnetizavam os jogadores. “A responsabilidade e o profissionalismo eram exigências de que não abdicava”, lembra Rui Rego, com André Marques a aprofundar o tema.

“A preocupação com os jogadores era notória. Sabia e controlava todos os aspectos. O peso, por exemplo, pode ser complicado. Mas com ele não havia escapatória. Sabia onde comíamos, o que comíamos, quando saíamos… estava atento a todos os aspectos. E isso faz toda a diferença, especialmente quando se tem a capacidade de abordar os problemas sem beliscar ninguém”, defende, confirmando que Jardim não é um técnico de gritos.

“Tacticamente, sabia o que queria em cada jogo. Preparava-se a fundo, transmitia as ideias e exigia a mesma intensidade que colocava no trabalho, sempre com uma competência que todos lhe reconhecem desde que se tornou mais mediático, embora sempre tenha sido assim. Por isso é que tem sucesso em todos os clubes por onde passa”.

Aliás, André Marques não está sozinho nesta análise ao técnico que tem algo em comum com Arsène Wenger, para além dos rumores que colocam o Arsenal entre os potenciais destinos do português nascido em Barcelona, na Venezuela, há 42 anos (mudou-se para a Madeira com três anos de idade).

Tal como o francês que, ao fim de um quarto de século, poderá ter chegado ao fim da linha nos “gunners”, também Jardim passou momentos da infância no restaurante dos pais, o que dificilmente terá qualquer correlação com o facto de construir uma carreira de sucesso como treinador de futebol. A verdade é que Jardim nasceu para o treino, paixão que abraçou precocemente, queimando todas as etapas desnecessárias para quem tinha pressa de chegar ao mais alto patamar do futebol nacional e um dia sentar-se no banco do Sporting. Premonição cumprida, após passagens pelo Sp. Braga e pelo Olympiacos, com o mesmo rigor e pragmatismo que parece colocar em todos os momentos da profissão.

O segredo de Jardim será sempre um mistério difícil de preservar, por mais que se apele ao sobrenatural. Trabalho é o termo, associado ao talento necessário para gerir balneários. A liderança que todos confirmam, de atletas a dirigentes. Jardim não tem vocação para inventar e, quando os problemas surgem, limita-se a resolvê-los.

“Conseguiu mais com menos”

“O Beira-Mar nem sempre conseguia garantir as condições ideais. Chegámos a enfrentar problemas tão básicos como a falta de luz e de água. Para muitos, há um episódio caricato que pode parecer irrelevante, mas diz bem da forma de trabalhar de Leonardo Jardim: dois dias antes de recebermos o Sporting não havia iluminação para treinar. Em vez de improvisar ou inventar, cancelou o treino. Quando não há condições mínimas é preferível falhar um treino a arriscar a integridade dos jogadores. Resultado? Empatámos! Simples”, recorda o defesa, rendido aos processos do técnico madeirense, fã do trabalho desenvolvido num Sporting “cheio de problemas”.

“Sem querer estar a ferir susceptibilidades, posso afirmar que a passagem do mister Jardim pelo Sporting — que acabou em segundo lugar — foi um desafio complicado, com um plantel cheio de problemas. Mas como sempre, o grande trunfo foi o de contar com o que tinha e construir algo de positivo. Basta comparar com o que se passa este ano e perceber que ele conseguiu muito mais com muito menos”, defende André Marques, que vê em Jardim a “competência em pessoa e com capacidade para assumir clubes de topo, como o Manchester City”.

Algo que se torna cada vez mais óbvio, com os principais clubes europeus atentos à carreira do português que começou por ser acusado de defensivo, para desmontar esta ideia com o ataque mais concretizador da Europa, com 126 golos.

“Posso garantir que sempre gostou de um jogo positivo. Mas para marcar golos é preciso haver qualidade no ataque. Aqui destaco um pormenor que ainda sublinha a capacidade da equipa e do seu colectivo, pois o Mónaco nem vive de um único avançado. Há muita gente a fazer golos e isso diz tudo”, defende Rui Rego, que, tal como André Marques, assiste à ascensão de Leonardo Jardim sem a mínima surpresa.

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