A economia do enriquecimento

Hoje, o que produz mais valor já não é a capacidade industrial: é a economia que usa os processos de enriquecimento especulativo do que já existe.

Acaba de sair em França um volumoso estudo dos sociólogos Luc Boltanski e Arnaud Esquerre. Chama-se Enrichissement - une critique de la marchandise  e é uma imponente análise e descrição de uma transformação económica iniciada no último quartel do século XX: de uma economia industrial passou-se para uma “economia do enriquecimento”. Enquanto a primeira incidia no desenvolvimento da capacidade produtiva de objectos standardizados e extraía valor de um alto nível de exploração do trabalho, a segunda baseia-se no factor do “enriquecimento”. Esta palavra é usada no livro com um sentido ambíguo: refere-se a uma economia inteiramente voltada para o luxo (portanto, destinada prioritariamente aos ricos), mas também às operações de enriquecimento de coisas existentes, no mesmo sentido em que se fala de enriquecimento de um metal. Por conseguinte, esta nova economia própria de um capitalismo desindustrializado não corresponde à produção de objectos novos, mas à criação de valor especulativo em tudo o que já existe e tem um passado. Hoje, como se pode ver em lojas de mobiliário “vintage”, até móveis e objectos do Ikea são vendidos como peças valiosas depois de serem “descontinuados” nas lojas da cadeia sueca. A indústria do luxo, o comércio de objectos antigos e de colecção, a criação de fundações e de museus, as artes e a cultura, a patrimonialização e o turismo: tudo isto faz parte dessa economia  que tende a criar “bassins” – bolsas – de enriquecimento (por exemplo, lugares onde há uma concentração de edifícios de culto, por vezes uma cidade inteira). Em certos casos, essas bolsas são induzidas por aquilo a a que Boltanski e Esquerre chamam “patrimonialização provocada”. Foi o que aconteceu em Bilbau, uma cidade outrora industrial, resgatada para a arte contemporânea e para o turismo cultural através da implantação do museu Guggenheim, projectado pelo arquitecto Frank Gehry.

Esta nova economia que injecta valor mas não produz nada explica que os profissionais da cultura tenham duplicado nas últimas duas décadas, informam os autores do livro; e explica também o funcionamento do sistema contemporâneo do mercado da arte e das exposições. Boltanski e Esquerre dedicam um bom número de páginas a fundações e centros, museus, leilões, bienais. Um exemplo destacado é a transformação do edifício da fábrica da Fiat, em Turim, emblema do mundo operário que já não existe, num imenso centro com hotéis, restaurantes, galerias. E, na parte superior, uma cúpula concebida pelo arquitecto Renzo Piano, onde foi alojada a colecção de arte do antigo dirigente da Fiat.

A lógica da política cultural inaugurada por Jack Lang, em França, mas difundida noutros países, segundo a qual tudo se pode tornar cultura e até os estilos de vida participam do processo de “artificação”, foi posta ao serviço da economia. Esta transformação que pôs em primeiro plano a economia do enriquecimento escapa em boa parte à compreensão da ciência económica tradicional (a precisar do auxílio da sociologia) e subtrai-se à marxiana “crítica do valor”. Para Marx, o capitalismo, precisando de produzir cada vez mais para obter a mesma quantidade de valor, haveria de se autodestruir. Mas na sua crítica da economia política o valor da mercadoria tem como medida única o tempo de trabalho necessário para a produção. Ora, na economia do enriquecimento, o valor já não tem nada a ver com o tempo de trabalho. Marx foi aqui ultrapassado por Mallarmé. Foi o poeta, e não o filósofo, o primeiro a compreender a frivolidade implícita no paralelismo entre a economia e a estética, quando escreveu: “Tudo se resume à Estética e à Economia política”.  

Sugerir correcção
Ler 4 comentários