Uma gravidez colectiva para serem ouvidas

Inspirada por um caso em que 18 adolescentes de uma escola engravidaram no mesmo período, Marta Cuscunà encerra a sua trilogia sobre resistência feminina com Sorry, Boys. No São Luiz, todos serão encostados à parede.

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Daniele Borghello
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Gloucester, uma pequena cidade costeira norte-americana no estado de Massachussets com 30 mil habitantes, é o tipo de localidade de que só se ouve falar para lá dos seus limites geográficos quando algo de muito anormal rebenta, momentaneamente, a bolha de habitual pacatez. Nos últimos meses, talvez Gloucester tenha registo um pequeno pico de notoriedade devido à nomeação para os Óscares do filme Manchester by the Sea, uma vez que se trata de uma escolha normal para filmagens sempre que os argumentos de Hollywood exigem proximidade do mar e pequenas comunidades que vivem marcadas pela actividade piscatória.

Em 2008, no entanto, Gloucester interrompeu o habitual sossego devido a um facto insólito. Durante a primeira metade desse ano, o gabinete médico da escola secundária local passou a dar conta de uma actividade bastante superior ao habitual, num entra-e-sai de raparigas adolescentes a pedirem testes de gravidez, voltando uma e outra vez até, suspeitava a enfermeira contratada pelo estabelecimento de ensino, alcançarem o resultado pretendido. Em poucos meses, o número de gravidezes ascendeu a 18, como se indicasse um planeamento colectivo que nunca chegou a ser provado – mas que a revista Time advogou quando revelou o caso ao mundo e relatou como ponto máximo do desespero de uma das jovens ter procurado relações com um sem-abrigo até finalmente ser fecundada.

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A história intrigou a criadora italiana Marta Cuscunà, então já a trabalhar nos primeiros capítulos da sua trilogia Resistenze Femminili. Mas foi sobretudo a descoberta de que no mesmo período uma marcha de 500 homens se tinha manifestado em Gloucester contra a violência doméstica (que tinha as mulheres como alvo) a cativá-la em definitivo. “Pareceu-me interessante que não se tratasse apenas de uma coincidência o facto de nessa mesma comunidade, afectada por um nível exasperado de violência masculina, houvesse duas reacções tão peculiares: um pacto de maternidade entre adolescentes e um protesto masculino contra a violência”, diz ao Ípsilon acerca do rastilho que desencadeou a criação de Sorry, Boys – a 18 e 19 de Março, no Teatro São Luiz, Lisboa, onde apresentou também o anterior A Simplicidade Traída.

A sobreposição dessas duas reacções levou Marta Cuscunà a pensar a etapa final da sua trilogia a partir de um lugar um pouco distinto das anteriores. Em Sorry, Boys, as protagonistas não são apresentadas como “mulheres vencedoras”, não lutam contra a condição subalterna e a opressão masculina reclamando o primeiro plano. Em vez disso, nesta adaptação livre dos acontecimentos de Gloucester, a marionetista manipula as cabeças e assume as vozes de pais, namorados ignorantes do plano em curso e director da escola, deixando para as raparigas uma comunicação via SMS que o palco também vai permitindo testemunhar – sendo que o telemóvel, graças a uma aplicação, vai marcando a passagem do tempo a partir da informação do crescimento do feto na contagem das semanas, do tamanho de um mirtilo (sete semanas) ou uma framboesa (oito), até um ananás (30) ou uma melancia (40).

Sorry, Boys vive, por isso, das consequências desencadeadas pela decisão das 18 raparigas que, ao excluírem os rapazes das suas gravidezes, deram forma à imagem de um desejo colectivo de criação de uma comuna feminina em que as crianças cresceriam sem a influência directa dos homens. Algo que para Cuscunà, aliado ao tal protesto que levou 500 homens para as ruas, a leva a concluir que se terá tratado de uma pungente e extrema resposta a uma vaga de femicídios.

Contra a parede

Em Lisístrata, peça de Aristófanes datada de 411 a.C., a ateniense que dá nome à obra comanda um grupo mulheres no recurso a uma greve de sexo para reinstaurar a paz entre Atenas e Esparta, cidades gregas entregues a uma ensandecida guerra que ameaçava devastar as duas sociedades, tornando-as igualmente mais vulneráveis a invasões estrangeiras. Foi em Lisístrata que Marta Cuscunà pensou quando descobriu a história de Gloucester num documentário. “Lembrou-me esse texto de Aristófanes, em que os corpos das mulheres se tornam o detonador de uma mensagem que diz respeito a toda a comunidade e que não se centra apenas no controlo sobre os seus próprios corpos”, justifica. “Também em Sorry, Boys são jovens mulheres que querem para elas e para os seus filhos um mundo diferente, sem violência, sem guerra. Em ambos os casos, o corpo feminino, a sua sexualidade e o seu poder de gerar vida tornaram-se o mais espantoso instrumento para tentarem fazer-se ouvidas e se oporem à destrutividade da violência.”

Nas bocas dos pais, Cuscunà coloca a óbvia culpabilização em causa própria mas também a rapidez com que é procurada uma responsável que possa concentrar todas as culpas e limpar a honraria e a responsabilidade das restantes – aquela que primeiro tivesse engravidado seria certamente, alvitram os pais, a que teria convencido as outras 17 a seguir-lhe os passos –, mas também a preocupação de, perante o resto da pequena cidade, os progenitores terem de trajar as vestes da vergonha. Mais uma vez, parecem ver as consequências sobre terceiros e não tanto o acto em si a concentrar o discurso. “Estas raparigas estão-se nas tintas para a família, para a moralidade”, desabafa uma das mães. “Esse é um comentário que tem que ver com o medo do inconformismo”, argumenta a artista italiana, “e com o medo de que pessoas que escolham para elas papéis diferentes daqueles impostos pela sociedade possam arrastar crises para as vidas dos outros. O inconformismo é perigoso porque abre novas possibilidades, mostra às pessoas que podem escolher.”

Assim, na tentativa de manter a ordem social e que tudo se conserve impecavelmente na mesma, alguém chega a sugerir que, na verdade, as raparigas se podem tornar “a melhor campanha a favor da abstinência sexual”. “As nossas miúdas que andaram a fornicar como coelhos tornar-se-iam as paladinas da castidade!”, sonham os pais, entre a ironia desesperada e uma atormentada tentativa de manipulação dos factos. “O objectivo de uma revolta”, lembra Cuscunà, “é subverter o sistema vigente que, por sua vez, tudo faz para se conservar. Instrumentalizar os protestos e trair-lhes o significado é sempre uma forma de manter o poder e os privilégios.”

“Meus senhores, estas raparigas queriam uma mudança e o que fizeram? A única coisa que nos encosta a todos à parede”, diz-se às tantas. Encostados à parede porque, a partir dali, terão de se mexer e assumir posições. E essa é já uma mudança efectiva.

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