Augusto Santos Silva: "Este ano pode ser o fim da tendência do populismo na Europa"

Em entrevista ao PÚBLICO e à Rádio Renascença, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, está optimista. Com a eleição de Trump e o "Brexit", "os europeus ficaram mais conscientes de que é necessário fazer escolhas". O resultado? Não vão dar o poder aos populistas.

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O ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva Miguel Manso

Com um optimismo surpreendente, o chefe da diplomacia portuguesa acredita que a sequência de eleições europeias de 2017 vai acabar, em Fevereiro, com os eleitores europeus a enviarem uma mensagem muito clara: os populistas e nacionalistas não podem governar a Europa.

A Turquia acaba de cortar relações diplomáticas com a Holanda, há preocupação em relação a várias eleições na Europa nos próximos meses. Como vê a Europa neste momento?
Vejo este ano eleitoral na Europa — que começa com as eleições na Holanda e irá até Fevereiro com as eleições em Itália — com bastante optimismo. Nos últimos anos, assistimos a uma maré enchente do populismo e do nacionalismo, e acho que as quatro eleições que se realizarão este ano — Holanda, França, Alemanha e Itália — podem significar o fim dessa tendência crescente do populismo na Europa.

Não é optimismo em excesso?
Não. Neste momento, na Holanda é claro — tanto quanto as coisas podem ser claras em política hoje — que a grande maioria do eleitorado holandês votará contra o populismo e a extrema-direita. O que acontece na Holanda é que o sistema partidário está tão fragmentado que um partido com vinte e tal por cento de intenções de voto pode ser o partido mais votado. Vamos ver. Mas isso não significa negar outro facto, para mim mais importante: dois terços dos holandeses votam em partidos pró-europeus e democráticos, do centro-direita, do centro-esquerda e da nova esquerda. Quem forma governo nas democracias parlamentares é quem tem maioria no Parlamento. Parece claro que na Holanda assistiremos a um governo de coligação de um governo multipartidário, uma fórmula muito habitual. As indicações que temos em relação a França são também de uma expressão eleitoral grande da extrema-direita, mas que não chegará para que as eleições presidenciais sejam ganhas pela extrema-direita francesa.

Marine Le Pen está à frente em todas as sondagens…
Mas está nesta circunstância: a esquerda e o centro-esquerda estão divididos em três candidaturas e não conheço nenhuma sondagem para um cenário de segunda volta que dê a hipótese de vitória a Marine Le Pen. No caso alemão, também o que estamos a ver é já um certo refluxo das expressões de voto na Alternativa para a Alemanha. É por isso que vejo este ano com algum optimismo. Nos últimos anos, houve uma maré de populismo e nacionalismo na Europa que enchia. Este ano, pode ser o ponto de viragem.

O “Brexit” não foi um sinal disso.
Não coloco a votação britânica pela saída da União Europeia directamente neste processo de ascensão do populismo.

Quais são as razões dessa viragem?
Uma simples constatação óbvia. O mainstream europeu, a grande maioria dos cidadãos europeus, continua a rever-se na Europa. Continuam a acreditar que o destino natural dos seus países é a Europa. E continuam bem conscientes de que, desde 1945 até ao presente, vivemos o mais longo período de paz na Europa. E que, primeiro a CEE e agora a União Europeia, foi absolutamente instrumental para isso. Não é por acaso que o Livro Branco da Comissão Europeia, proposto pelo presidente Jean-Claude Juncker, tem um cronograma muito ilustrativo que mostra os períodos de paz e de guerra interna na Europa e mostra bem que o período do pós-guerra é o mais longo período de paz da história europeia.

Essa mensagem é repetida pelos políticos, mas não temos visto adesão dos cidadãos a essa narrativa positiva...
Há um processo recente e muito importante do que alguns chamam “desafiliação” — o distanciamento dos cidadãos perante as instituições europeias e até, em muitos casos, o ideal europeu. Esse distanciamento foi mais evidente no período de crise, entre 2008 e 2013/14, e sobretudo desde 2010, com a crise das dívidas soberanas. Mas a partir do momento em que a Europa entrou de novo num ciclo de crescimento económico, embora ainda muito lento e escasso, também se nota, na opinião pública, alguma reconciliação com as instituições e o ideal europeu.

Isso não é sobretudo uma percepção?
Não, não. Todas estas considerações são analíticas. Estou a pronunciar-me sobre factos, sobre indicadores de opinião, certamente, e também – julgo que ao longo deste ano isso será claro – sobre indicadores de resultados eleitorais. Mas o ponto é este: a força dinâmica (não o volume em si mesmo, mas a tendência) esteve, nos últimos anos, do lado de alguma tentação de retracção nacionalista, e muito marcada por uma agenda populista, mesmo quando essa agenda tendia a ser encarnada por partidos centristas. E chegamos a 2017, em função do “Brexit”, depois do resultado das eleições norte-americanas e das perspectivas de desenlace que se anteviam em França, Holanda e mesmo na Alemanha, chegamos a um ponto crítico em que o eleitorado — a cidadania europeia — se viu confrontado com uma escolha que podia ter efeitos reais. Não se tratava apenas de nós nos queixarmos (legitimamente) das instituições, da Comissão, do nosso governo… de votarmos com voto de protesto em forças de protesto. Tratou-se, finalmente, da possibilidade de essas forças de protesto poderem tornar-se forças de governação. Julgo que algum deste refluxo que se sente tem que ver com o facto de que as coisas pudessem ser encaradas pelos cidadãos como agora sendo “a doer” — afinal era mesmo possível que o Presidente fosse um populista.

Os europeus ficaram atemorizados com a eleição de Trump e com o “Brexit”?
Mais conscientes de que é necessário fazer escolhas. Um dos resultados do “Brexit” e da eleição americana foi o de os 27 Estados-membros da União Europeia reforçarem a sua própria consciência de que a Europa é o seu presente e o futuro que querem.

A estratégia da Alemanha e da Holanda em não permitir os comícios dos ministros turcos nos seus países teve que ver com isso, tentar roubar eleitorado aos partidos populistas?
Tem que ver sobretudo com questões de segurança e de política interna, na relação entre autoridades nacionais e locais. No caso da Alemanha, os comícios foram proibidos por decisão das autoridades locais. É difícil a um português compreender bem a questão que está aqui em causa.

Porque não temos um milhão de turcos?
Não, porque a nossa experiência é exactamente ao contrário. Temos quatro deputados na Assembleia da República dos círculos da emigração — dois fora da Europa e dois da Europa — que fazem campanha eleitoral (no Brasil, EUA, França, Alemanha) sem qualquer problema, fazendo a sua campanha, mas respeitando as regras e os valores das sociedades de acolhimento. E, quando há eleições em Cabo Verde ou no Brasil, a comunidade cabo-verdiana e brasileira residente em Portugal também tem as suas iniciativas de campanha e as pessoas votam em Portugal, quando as suas leis eleitorais o permitem. Não temos nenhuma experiência, por isso é tão estranho esta crise.

Onde nos pode levar esta escalada?
À compreensão de que não podemos escalar mais. Tudo o que a Comissão Europeia disse esta terça-feira, e o secretário-geral da NATO, é subscrito por mim: é preciso contenção, é preciso baixar o tom, é preciso que nenhum de nós se deixe manipular pela lógica mais eleitoralista ou a lógica mais política interna do seu país.

A proibição desses comícios foi um erro, a autorização teria evitado esta subida de tensão?
Não creio. Talvez seja necessário haver um maior diálogo entre as autoridades turcas, alemãs e holandesas para que cada parte possa compreender as razões uns dos outros.

O impacto sobre a Europa pode ser brutal. Se Ancara não cumprir o pacto migratório que fez com a UE, os dois milhões de refugiados que a Turquia aceitou receber vão querer entrar na UE.
Portugal e a Turquia são aliados da NATO, a Turquia é um país candidato à integração europeia e Portugal apoia essa candidatura. Não tenho nenhum dado, nenhuma tradição de utilização de qualquer mecanismo de chantagem por parte da Turquia na sua política.

Mas foi isso que o presidente Erdogan fez, ameaçando recuar no pacto migratório que assinou com a UE. É bluff?
Nos últimos dias têm-se dito coisas excessivas. Andamos a tratar-nos uns aos outros de fascistas para cima e para baixo…

De nazis.
Vamos deixar passar este clima eleitoral tão puxado para que as coisas sejam reencaminhadas para o carril de onde nunca deveriam ter saído — o das relações diplomáticas entre países.

O presidente Jean-Claude Juncker acaba de apresentar cinco cenários para o futuro da Europa. O que é que Portugal prefere?
É inimaginável um cenário de retrocesso. Nos cinco cenários apresentados no Livro Branco há o cenário 2 que significaria nós desistirmos do processo de integração europeia e reconduzi-lo apenas a um mercado único. Esse cenário de retrocesso é inaceitável para Portugal e não conheço nenhum país que tenha dito, sequer, que vale a pena discuti-lo. O cenário 1 é o de continuar tudo na mesma e de integração incremental (“Vamos vendo quais são os problemas e vamos arranjando as soluções adequadas”), mas a Europa precisa de mudanças.

Em relação aos outros três cenários: há um no qual nos sentimos totalmente à vontade — o  cenário de todos progredirmos em conjunto no sentido de uma maior integração. O que dizemos é que essa maior integração exige completar a união económica e monetária e maior democraticidade, maior controlo do Parlamento Europeu e dos parlamentos nacionais.

Em relação aos dois cenários intermédios, um é o das múltiplas velocidades — quem quiser avançar mais avança. Em relação a esse também nos sentimos à vontade, mas com duas condições: tem de haver coerência (não pode ser: eu reúno-me com este país para o efeito x e com aquele para o efeito y, senão há um risco de cacofonia e caos); e a segunda condição é que deve avançar quem quiser (não aceitamos um cenário de múltiplas velocidades por exclusão, ou seja, um conjunto de países excluir outros da sua vontade de avançar). Na prática, estas múltiplas velocidades já existem na Europa. Há 19 países que estão no euro e há nove que não estão, há uns que estão em Schengen e há outros que não estão.

Em relação ao cenário 4 (fazer mais em conjunto em menos domínios), é um cenário que merece debate. Mas o Livro Branco dá os exemplos errados, porque sugere que nesse cenário os domínios a serem desvalorizados sejam os domínios do emprego, do desenvolvimento regional e da dimensão social. Isso para nós não é aceitável. Portanto, há muita discussão a ter.

Justamente. O ministro disse que o “óptimo seria o 5”, mas o primeiro-ministro falou numa solução “entre o 4 e o 5”. Continua a não ser claro o cenário que Portugal prefere.
Para nós o cenário óptimo é o 5. O primeiro-ministro disse, eu também e repito que, dentro dos cenários mais exequíveis, temos de chegar a uma boa combinação dos cenários 4, 5 e 3. Temos de chegar a uma boa combinação, isto é, é possível discutir uma Europa em que nem toda a gente avança ao mesmo tempo na mesma direcção (cenário 3); podemos discutir um esforço de retirar de Bruxelas e da discussão europeia questões que são mais bem tratadas ao nível nacional (cenário 4) e mesmo no cenário 5 (de maior integração), maior integração não significa afastamento dos cidadãos ou dos parlamentos nacionais.

O último road map para a união económica europeia ficou na gaveta. De onde vem o seu optimismo?
Não ficou. O último roteiro para completar a união económica e monetária é o relatório dos chamados "cinco presidentes": o presidente do Banco Central Europeu, da Comissão, do Conselho e do Eurogrupo…

De 2015…
Sim. E que previa um calendário nos termos do qual em 2017 devíamos tomar certas decisões, como completar a união bancária (com o seguro europeu de depósitos) e haveríamos de, a médio prazo, tomar outras decisões.

Algumas coisas desse relatório já foram concluídas: na união bancária, avançámos no mecanismo único de supervisão e no mecanismo único de resolução; e, por isso é que Portugal, a Espanha e todos os subscritores da Declaração de Lisboa, na reunião dos sete países do Sul, foram unânimes em defender que falta tomar a decisão com que nos comprometemos em relação à união bancária. O essencial é o mecanismo europeu de seguros de depósito.

Mas avançámos mais um pouco, dizendo que é preciso fazer a reforma do euro, porque a união monetária até agora tem agravado a divergência entre as economias, em vez de favorecer a convergência entre as economias. É preciso corrigir o que há para corrigir na união monetária, para que ela seja uma força e um factor de convergência.

Isto implica sobretudo criar uma capacidade orçamental própria da zona euro, portanto aumentar os recursos da zona euro, e fazer evoluir o mecanismo europeu de estabilidade na direcção de um verdadeiro Fundo Monetário Europeu, que é, aliás, uma proposta que em Portugal é muito consensual. Não nos referimos tanto às questões da reestruturação da dívida, porque a situação dos países...

Mas é o elefante no meio da sala.
Tenderia a dizer que, neste momento, o elefante no meio da sala é o euro, a moeda única, e estou apenas a citar o meu próprio primeiro-ministro. Sobre a dívida é preciso ter em atenção duas coisas: em primeiro lugar, já temos instrumentos de gestão da dívida. Nos últimos três/quatro meses, Portugal reembolsou o FMI em mais de quatro mil milhões de euros e isto significou nós pagarmos menos juros pela dívida. E a Grécia conseguiu um alargamento das maturidades e dos períodos de carência, num período em que ainda não começa a pagar juros. São instrumentos de gestão da dívida. Há outros que podem ser postos em prática e nós precisamos, ao nível europeu, de outros instrumentos de gestão da dívida. Essa questão é diferente da reestruturação da dívida.

Para ser totalmente claro tenho de ser um pouco específico: se reestruturação da dívida significa decisão unilateral de um Estado-membro de recusa de assunção dos seus encargos, Portugal não quer nenhuma espécie dessa reestruturação da dívida. Não há um problema português de dívida. A nossa dívida é alta, quer a pública quer a privada, mas está a ser contida e está a ser reduzida. A dívida pública líquida no ano passado já baixou um ponto percentual.

Agora, a Europa — e sobretudo a zona euro — tem um problema de excesso de endividamento. À luz dos critérios de Maastricht, até a Alemanha tem hoje uma dívida pública excessiva. Precisamos de encontrar instrumentos europeus que ajudem o BCE — porque o BCE está a fazer um pouco mais do que a política monetária que lhe compete. E como Mario Draghi está sempre a dizer, e bem, a política monetária do BCE (uma das boas políticas postas em prática desde o Verão de 2014) necessita de ser acompanhada por políticas orçamentais. Políticas orçamentais um pouco mais expansionistas da parte de países como a Alemanha, que têm condições para ter políticas orçamentais um pouco mais expansionistas.

O "Brexit" vai mesmo para a frente. Como fica a situação dos emigrantes portugueses no Reino Unido, uma vez que o pedido da Câmara dos Lordes não foi aceite pelos Comuns?
Essa é uma questão central das negociações. O chefe das negociações a nível europeu, Michel Barnier, tem insistido na fórmula “citizens first”: devemos entender-nos tão depressa quanto possível sobre os direitos recíprocos dos britânicos residentes na União Europeia e dos europeus residentes no Reino Unido – porque uma boa solução para esse problema criará condições para que haja também uma boa solução para a saída do Reino Unido. O que é uma boa solução para Portugal? A que salvaguarda todos os direitos que hoje os residentes portugueses no Reino Unido têm como cidadãos europeus e que encontra uma boa solução para os que, depois do "Brexit", queiram emigrar para o Reino Unido.

Mas o desencontro de votações não é animador.
Não tenho nenhuma indicação da parte das autoridades britânicas que me permita exprimir alguma suspeita ou desconfiança. Há quinze dias reuni-me em Londres com o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico e ele foi muito enfático ao dizer que o Reino Unido precisa de europeus a residir no Reino Unido, como a Europa precisa de britânicos, e que haveria de se chegar a uma solução satisfatória para ambos os lados. Pedi que se facilitasse o processo pelo qual os portugueses que vivem há mais de cinco anos no Reino Unido podem obter a autorização permanente de residência, porque esse processo está hoje muito burocratizado.

Nota: entrevista corrigida às 18h de 17 de Março. Onde se lia "afinal era mesmo possível que o Presidente dos EUA fosse um populista" deve ler-se "afinal era mesmo possível que o Presidente fosse um populista".

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