Sonia Braga é o nosso edifício

Com Aquarius Kleber Mendonça Filho oferece uma vingadora ao seu cinema, a si próprio e a nós, espectadores. A empatia, aqui, é coisa política. Sonia Braga c’est moi.

De um edifício construído nos anos 40, esta sexagenária, viúva, ex-jornalista musical, prateleiras cheias de vinis, crente nos efeitos amorosos de ouvir Maria Bethânia, não quer sair
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De um edifício construído nos anos 40, esta sexagenária, viúva, ex-jornalista musical, prateleiras cheias de vinis, crente nos efeitos amorosos de ouvir Maria Bethânia, não quer sair
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Podia ouvir-se, no último Festival de Cannes, a conversa travada entre Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, e Elle, de Paul Verhoeven. Duas mulheres atravessaram o ecrã tendo como banda sonora da sua caminhada o desejo — e não uma explicação, e não medo algum.

Isabelle Huppert e Sonia Braga: uma dançou ao som de Lust for Life, de Iggy Pop, a outra ondulou com Roberto Carlos n’O Quintal do Vizinho. Cada uma podia trocar diálogos com a outra. Dessa forma, ambas podem dizer, por exemplo, que “a vergonha não é um sentimento suficientemente forte para nos impedir de fazer o que quer que seja” (é o que diz a personagem de Isabelle, Michèle Leblanc, que foi violada e tira a máscara ao violador) ou que (olhe-se agora de frente para Isabelle e Sonia...) tendo cara de velhas, têm sobretudo rosto de crianças (é isso o que diz Clara, jornalista aposentada mas activista da memória). Ela é a inquilina que resta num antigo edifício de apartamentos do Recife que está a ser ameaçado pelo business e pelo “sangue nos olhos” de um agressivo projecto imobiliário. Clara é Sonia Braga, tem 65 anos.

Aquarius e Elle, um diurno e sinistro (o filme brasileiro), o outro escuro e espirituoso (o filme francês), tiveram por trás o empenho de um mesmo produtor, Saïd Ben Saïd, o que, sendo uma coincidência (é?), até parece selar esta conversa entre heroínas. (Se calhar até se pode dizer: “esta conversa entre heroínas de acção”, porque elas vão em frente apesar e por causa da adversidade.) É luminosa a possibilidade de Michèle/Isabelle e Clara/Sonia pertencerem ao mesmo clube: duas actrizes de temperamentos opostos — o fluxo sensual da brasileira, a meticulosidade cerebral da francesa — são o património de que os filmes se servem e de que os filmes são feitos. O que elas foram no ecrã, o que desencadeiam em nós, as fantasias que também são, são as matérias de si próprias que utilizam, como marca d’água, nas suas personagens e de que os cineastas se servem para a mise-en-scène. Os bons actores não interessam – os maus também não, é claro. O que é que isso é? Proeza? É coisa explicável: o talento é de acesso livre aos que se esforçam. Já é de poucos e mais inexplicável a capacidade de ser património. São os corpos que se cruzaram com as nossas histórias — aqueles sobre os quais temos de dizer: c’est moi. Coloque-se ali, no ecrã, um deles em evolução ferozmente livre, evocativa e desencadeadora de memórias: o filme abrir-se-á à possibilidade de ser documento sensual que regista mudanças de ritmos, patifarias da luz ou alterações de humor, mas será sobretudo nostalgia do (nosso) passado e confronto com o (nosso) presente. Sim, estamos já dentro de um apartamento, estamos dentro de Aquarius, a segunda longa-metragem de Kleber Mendonça Filho, cineasta do Recife.

Na era de Aquarius

Na intimidade de Clara, no corpo dela, estão impressos os sinais de uma reconfiguração irreversível que acontece lá fora, a mudança de uma cidade, Recife, estado de Pernambuco, e que tem implicação devastadora na memória dessa mulher, no seu mundo. Escusado será dizer que Clara (o seu pé descalço numa cena é o pé de Sonia Braga e por isso são os pés descalços de Gabriela Cravo e Canela...) podemos ser nós. Se o quisermos. Clara pode ser a nossa heroína. Poderia ser uma heroína para as personagens enjauladas de O Som ao Redor (2012), a primeira longa de um realizador de filmes sobre edifícios e sobre a classe média brasileira, sobre medos e preconceitos, sobre o terror da invasão e talvez sobre a entrega à invasão – como sempre num filme de terror. Clara pode ser o que aquelas personagens desistiram de ser quando se encerraram nas torres de segurança. Não havia ninguém com hipótese de expandir a sua sensualidade em O Som ao Redor, western urbano com que Kleber, cineasta que sempre se assumiu mais invadido pelo cinema americano dos 70s do que pelo Cinema Novo brasileiro, fazia o seu Assalto à 13.ª Esquadra (John Carpenter, 1976): havia sexo, mas o prazer era abafado pelos electrodomésticos (o som cortava tudo nesse filme sufocante, os enquadramentos e as grades, que aprisionavam as personagens, não permitiam a performance do prazer). Mesmo Crazy little thing called love, dos Queen, era cortada pelos latidos dos cães. Agora, em Aquarius, oiça-se como se expande Another one bites the dust. Agora há todo o espaço para os cabelos de Sonia Braga. E para as suas aventuras sem censura pelo prazer.

Aquele apartamento afagado pelo vento da praia que tem lá dentro a memória de um mundo anterior, aquele corpo, sobrevivente da devastação de um cancro na mama e onde a memória resiste (o corpo de Clara e o edifício são a mesma coisa) rasgam a claustrofobia de O Som ao Redor. São uma possibilidade mítica que Kleber oferece, como se oferecesse um vingador às anteriores personagens. E a si próprio também. E a nós, espectadores. É uma possibilidade de empatia.

Clara é o seu nome. De um edifício construído nos anos 40, esta sexagenária, viúva, ex-jornalista musical, prateleiras cheias de vinis, crente nos efeitos amorosos de ouvir Maria Bethânia, não quer sair. Nem por dois milhões de reais. Só morta. Todos os outros inquilinos saíram, vencidos pelo som ao redor, mas Clara não quer esquecer. “Tou viva, sabe?” Clara encarna um património e um espírito que teimam sobre a decadência da matéria — o seu corpo mostra (e o corpo de Sonia Braga mostra).

Clara pode ser o que se quiser. Mulher de afectos que oferece resistência a uma ordem que se mostra implacável na dinâmica de esquecimento, a sua empatia é uma arma política. Por isso ela pode ser receptáculo, não programado, misterioso, de vários encontros, ponto para onde confluem os nossos fantasmas e projecções. Sim, por que não ser ela um retrato de Dilma Rousseff, a ex-Presidente do Brasil afastada por um impeachment, numa espécie de sequela alternativa e vingadora da realidade? Clara é também o sítio onde Sonia se encontrou com Sonia: na ópera rock Hair, onde aparecia nua e onde se canta This is the dawning of the age of aquarius, ela despertou pela primeira vez as atenções. Clara pode também falar por (alguns de) nós quando fala de nós. Quando, por exemplo, se insurge contra o facto de hoje o “velho” ser “velho” quando não gostamos, já que quando gostamos o “velho” passa a vintage: Clara não o sabe mas vou aproveitar isso como statement sobre o estado das coisas do cinema, sobre o exercício do esquecimento que é, por exemplo, La La Land e quase tudo o que agora encanta. Clara, que tem nela o retrato da mãe do realizador, tem também nela a fantasia de Kleber de com ela fazer o seu Jackie Brown, o filme de Tarantino que o realizador venera como um dos grandes retratos do cinema contemporâneo.

Clara é uma heroína com possibilidades míticas. Paira em nós. Mas sendo numa militante da memória não é personagem branqueada: as suas contradições de classe – veja-se toda a sua relação com a criada Ladjane e como “falam” sobre isso os espaços que as separam; veja-se a sequência em que Ladjane se intromete numa sessão de fotografias familiar, interpondo a sua própria memória — continuam a mostrar uma ordem ancestral intacta nos seus conflitos. Sonia Braga: não direi que é um monumento, mas neste filme snob, romântico, lúcido, terminal e resistente, ela é o nosso edifício. Sonia Braga c’est moi.

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