O que o Banco de Portugal poderia ter feito no caso do BES mas não fez

A opção foi deixar chegar o banco a um ponto de onde era praticamente impossível recuperá-lo, com os custos financeiros e sociais que sofrem não apenas os lesados mas colaboradores, clientes e contribuintes.

A narrativa que vem sendo insistentemente transmitida pelo Senhor Governador do Banco de Portugal (BdP) relativamente aos poderes de que (não) dispunha à data do colapso do BES [Banco Espírito Santo] revela uma louvável teimosia. Porém, não é pelo facto de o Senhor Governador repetir até à exaustão que mais não fez apenas porque não podia, que os portugueses em geral e os senhores deputados que o têm ouvido em sede de audição parlamentar em particular devem acreditar nessa narrativa. Muito pelo contrário.

Não só para memória futura, mas sobretudo por respeito aos cerca de mil e setecentos trabalhadores do Banco de Portugal que todos os dias cumprem com zelo as suas funções e que não merecem ser contaminados pelos atos praticados pelo Senhor Governador e demais membros do Conselho de Administração do Banco de Portugal, importa fixar a verdade dos factos.

Centremo-nos no período em que sabemos terem sido transmitidos ao BdP, por diversas entidades, alertas relativamente aos problemas de confusão e conflito de interesses entre a atividade do BES e do GES [Grupo Espírito Santo], ou seja, entre outubro de 2013 e julho de 2014. Nesse período, não só o Banco de Portugal e o Senhor Governador tinham conhecimento das irregularidades que vinham sendo praticadas pela administração do banco, como dispunham de ferramentas conferidas por lei que eram mais do que adequadas a prevenir e corrigir o que se sabia estar a acontecer no BES. Senão, vejamos:

Em primeiro lugar, importa notar que, em geral, no desempenho das suas funções de supervisão, compete ao BdP vigiar pela observância das normas que disciplinam a atividade das instituições de crédito, podendo exigir a realização de auditorias especiais por entidade independente, por si designada, a expensas da instituição auditada (artigo 116.º/2 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) na redação então em vigor). Esta é uma medida preventiva que podia e devia ter sido aplicada quando surgiram os primeiros sinais de alerta graves, como foi o caso. Podia, e devia, mas o Banco de Portugal não o fez.

Em segundo lugar, existem hoje claros indícios de que o BES incumpriu normas legais, normas regulamentares e determinações específicas que lhe foram impostas pelo BdP, sendo mais do que legítimas as dúvidas sobre as garantias de uma gestão sã e prudente por parte da administração do BES. E o que podia o Banco de Portugal fazer desconfiando que a administração do BES não oferecia tais garantias e que não cumpria as referidas normas e determinações específicas? Podia suspender ou substituir um ou mais membros dos órgãos de administração do BES (artigo 141.º/1/c) do RGICSF na redação então em vigor). Podia, e devia, mas não o fez. Podia sujeitar certas operações ou certos atos à aprovação prévia do BdP (artigo 141.º/1/c) do RGICSF na redação então em vigor). Podia, e devia, mas não o fez. Podia designar uma comissão de fiscalização para estar em permanência no BES e manter o Banco de Portugal informado sobre a sua atividade (artigo 141.º/1/d e 143.º) do RGICSF na redação então em vigor). Podia, e devia, mas não o fez.

Mas mais. Perante uma situação de violação grave ou reiterada de normas legais ou regulamentares que disciplinem a atividade da instituição, de verificação de motivos atendíveis para suspeitar da existência de graves irregularidades na gestão da instituição ou de verificação de motivos atendíveis para suspeitar da incapacidade dos acionistas ou dos membros do órgão de administração da instituição para assegurarem uma gestão sã e prudente ou para recuperarem financeiramente a instituição, pode (deve) o BdPl determinar a suspensão do órgão de administração e nomear uma administração provisória. Podia. Devia. Mas não o fez.

Note-se como todas e cada uma destas medidas, que fazem parte do que se designa genericamente por supervisão e intervenção corretiva, não versam sobre a questão, sem dúvida mais subjetiva e complexa, de saber se o Dr. Ricardo Salgado tinha ou não a idoneidade requerida para o exercício de funções na administração de um banco ou se o Senhor Governador tinha ou não poderes para lhe retirar tal idoneidade. As medidas que acima enunciamos destinam-se a prevenir e corrigir problemas que sejam detetados em instituições, logo no momento em que os mesmos sejam detetados e antes que evoluam para um grau de gravidade que impeça a sua correção. É inegável que a situação do BES no período entre outubro de 2013 e julho de 2014 preenchia, se não todos, pelo menos alguns dos requisitos para aplicação de medidas corretivas.

Por motivos que apenas o Banco de Portugal e o Senhor Governador poderão explicar, mas que certamente não passam pela ausência de mecanismos legais, a opção foi deixar o BES chegar a um ponto de onde era praticamente impossível recuperá-lo enquanto tal, com os custos financeiros e sociais que, não apenas os chamados lesados do BES, mas também colaboradores, clientes da instituição e contribuintes sofreram, sofrem e continuarão a sofrer.

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