Fachadismo: a morte da (autenti)cidade de Lisboa

Na tentativa de salvaguardar a sua autenticidade, a cidade que estagna a sua própria evolução está a condenar-se ao seu esvaziamento cultural.

O debate sobre a intervenção nos centros urbanos chegou a um novo patamar com a queixa na justiça contra o edifício projetado por Souto de Moura na Praça das Flores. É uma situação preocupante que põe em causa a capacidade dos arquitetos intervirem originalmente nos centros urbanos quando já existem diversos obstáculos à renovação arquitetónica dos centros históricos. O resultado será uma cidade cada vez mais presa ao passado, superficial e desinteressante, uma Veneza a tender cada vez mais para o Venetian de Las Vegas, uma caricatura de si mesma sofrendo uma gradual desertificação cultural e de população, mais pobre mas mais cara.

A queixa é “apoiada” por uma petição online que adota a errónea equivalência entre histórico e antigo, atribuindo a ambos um valor insuperável por qualquer intervenção de linguagem contemporânea. Esta argumentação, em parte também sustentada pelo PDM, incentiva o esventramento das estruturas existentes e a manutenção de fachadas. Muitas vezes estas intervenções aumentam significativamente o volume construído, desvirtuando as já de si irrelevantes fachadas; outras, as fachadas condicionam os programas e tipologias criando uniformização na oferta. Estas limitações contribuem para a desertificação dos centros urbanos.

No entanto, o aspeto mais pernicioso desta atitude em relação ao antigo é a sua progressiva generalização. Quando a consequência é uma queixa na justiça ou a condenação na imprensa, não é de surpreender que os técnicos nas câmaras se mostrem avessos aos riscos da aprovação de projetos potencialmente polémicos. Se essa é a atitude conhecida dos técnicos camarários, é também natural que os clientes prefiram avançar já com uma proposta de manutenção de fachada, às vezes com custos elevados, com a esperança de acelerar a aprovação. Os próprios arquitetos, com honorários limitados, terão algum incentivo para partir já desse pressuposto. Esta sequência contribui para o crescente empobrecimento das áreas que se pretendem valorizar.

A petição revolta-se também contra o alegado tratamento preferencial de um “arquiteto galardoado”. Realmente, não devem ser os arquitetos a ser avaliados, mas sim os projetos. É um ponto importante ainda que não existam estudos conhecidos sobre a realidade dessa situação. No caso específico do arquiteto Souto de Moura, existem dois projetos seus em curso que preveem a manutenção de fachadas. Não apoiando o tratamento preferencial de “arquitetos estrela”, o reverso desta medalha é os centros urbanos atraírem cada vez menos intervenções de arquitetos de renome.

São poucas as soluções de fachadismo positivas e mais raras ainda as que se tornam obras de referência para o futuro. Exemplos do contrário abundam, um deles, duplamente virado para o passado, é o edifício do Comércio do Porto, na Avenida dos Aliados, no Porto. Nos anos 1990, o edifício foi esventrado tendo sido mantida a fachada monumental “beaux arts” de 1930 devido, supõe-se, ao seu elevado valor estético e histórico. A ironia é que Rogério de Azevedo, o arquiteto, tinha visto o seu projeto original indeferido pela Comissão Estética da Câmara e foi forçado a harmonizar a sua fachada com os restantes edifícios da Avenida. O que ele pensava da estética monumental “beaux arts” pode ser inferido do seu projeto para a Garagem do Comércio do Porto — contíguo ao anterior edifício —, concluído apenas dois anos mais tarde e um dos primeiros e mais importantes exemplos do modernismo em Portugal.

A intervenção nos centros urbanos aproxima-se cada vez mais da taxidermia (literalmente do grego: ordenamento da pele), como um jardim zoológico que preferisse ter versões empalhadas das espécies extintas a exibir exemplares vivos e contemporâneos. A cidade sempre foi o somatório de intervenções de várias épocas que rompem em maior ou menor grau com as anteriores. A raridade das intervenções contemporâneas só contribui para fazer sobressair e contrastar os poucos exemplos que surgem. Na tentativa de salvaguardar a sua autenticidade, a cidade que estagna a sua própria evolução está a condenar-se ao seu esvaziamento cultural. A uma cidade com futuro não basta parecer autêntica, tem também de o ser.

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