Estado arrisca pagar indemnizações por não avançar com inspecção a motos

Esmagadora maioria dos centros de inspecção estão prontos há mais de cinco meses, sem poderem rentabilizar um investimento global de 30 milhões de euros. Processo de adaptação decorreu com anomalias

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Enric Vives-Rubio

O Estado arrisca-se a ter que indemnizar os cerca de 150 centros de inspecção que obrigou a adaptarem-se para poderem realizar inspecções a motos com cilindrada superior a 250 cm3. Desde Setembro passado que a esmagadora maioria dos centros está obrigada a ter as instalações e os equipamentos totalmente operacionais para as novas inspecções, mas mais de cinco meses depois continuam por publicar os vários diplomas que permitirão avançar com as novas avaliações. E o Governo, que chegou a garantir que as inspecções iam avançar no ano passado, não se compromete com qualquer data.

Mas essa é apenas uma parte do problema. É que o processo de adaptação dos centros de inspecção decorreu com várias anomalias, com a alteração das regras a meio do jogo. Exemplo disso é o facto de uma portaria publicada no final de 2013 ter alterado alguns requisitos técnicos que os centros estavam obrigados a cumprir, já depois de todos os operadores terem entregado no Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), que regula e fiscaliza este sector, os projectos de adaptação. E sem que tenham sequer sido aceites alterações a esses projectos.  

As novas inspecções, prevista na lei desde 2012, vão abranger motociclos, triciclos e quadriciclos com cilindrada superior a 250 cm3, bem como reboques e semi-reboques com peso superior a 750 Kg. O Ministério do Planeamento e das Infra-estruturas (MPI) estima que ficarão sujeitos às novas regras 280 mil veículos da primeira categoria e 56 mil da segunda, num total de 336 mil novas viaturas que serão obrigadas a fazer inspecções de dois em dois anos ou anualmente. Excepção são os motociclos, triciclos e quadriciclos novos com cilindrada superior a 250 cm3 que estão isentos de inspecção nos quatro anos após a primeira matrícula.

Contactado pelo PÚBLICO, o ministério reconhece que é necessário alterar o decreto-lei que define as categorias dos inspectores, fazer uma portaria a determinar quando entram em vigor as novas inspecções e o IMT aprovar uma lista de deficiências para os veículos sujeitos a essa exigência. Mas não se compromete com qualquer data para fechar este processo. O presidente da Associação Nacional de Centros de Inspecção Automóvel (ANCIA), Paulo Areal, lembra que também será preciso formar os inspectores, um processo que estima demorar no mínimo três meses, depois de ser publicada a lista de deficiências. “Em Março de 2016 entregámos ao IMT um projecto de classificação de deficiências e estamos disponíveis para colaborar no que acharem conveniente. Mas não se avança com nada e não é dada nenhuma justificação”, lamenta Paulo Areal.

“As inspecções iniciar-se-ão quando estiver assegurada a cobertura de todo o território nacional, por um conjunto de centros que assegure essas inspecções”, argumentava o MPI, em finais de Dezembro, numa altura em que praticamente todos os centros já estavam sujeitos às novas regras. Dizia então que “muitos centros” ainda estavam a adaptar-se, o que é desmentido pelo IMT que garante que só lhe chegaram sete pedidos de alargamento dos prazos devido a justo impedimento demonstrado pelos operadores, relacionados com atrasos de licenciamento das câmaras.

O professor da Universidade de Coimbra, Licínio Lopes Martins, especializado em Direito Administrativo, acredita que o Estado se arrisca a ter de pagar indemnizações aos centros de inspecção, face à demora na publicação dos diplomas necessários para as novas inspecções avançarem. “Os operadores podem pedir indemnizações ao Estado”, considera Licínio Lopes Martins, lembrando que os centros foram obrigados a fazer investimentos, mas agora não podem rentabilizá-los.

João Pacheco Amorim, advogado e professor da Universidade do Porto (UP), concorda que em tese as indemnizações são possíveis. “O Estado obriga os centros a fazer um investimento inútil, que depois fica parado e que não podem rentabilizar”, analisa. Contudo, o docente da UP tem dúvidas de que os tribunais atribuam compensações em situações destas. “Os tribunais são muito conservadores nestas matérias”, argumenta.

O presidente da ANCIA não pretende nesta fase recorrer aos tribunais, mas admite que nada impede os responsáveis de cada centro de o fazer. “As pessoas sentem-se enganadas com este processo”, reconhece, estimando que o investimento global feito pelo sector na adaptação dos centros ronde os 30 milhões de euros.

A forma como o IMT desenvolveu todo o processo de adaptação dos centros merece críticas de alguns. O facto de ter recuado em parte das exigências, quando já todos tinham apresentado os projectos de adaptação é considerado de duvidosa legalidade, por Licínio Lopes Martins. Pacheco Amorim afirma que tal constitui uma manifesta violação do princípio da transparência e da imparcialidade. “Não se podem alterar as regras do jogo, quando o contraente público já está no conhecimento dos projectos e em condições de prejudicar ou beneficiar alguma das partes”, defende o advogado. “Perturba a confiança e a segurança jurídica de qualquer investidor”, sustenta Licínio Lopes Martins.

Sobre esta matéria o IMT diz que os requisitos técnicos “apenas vieram facilitar as adaptações que os centros de inspecção estavam obrigados a realizar, nomeadamente com a preocupação de racionalizar os investimentos a realizar pelos operadores”.

Só há quatro pessoas para fazer vistorias

No Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) só há quatro pessoas a trabalhar no sector da regulação dos centros de inspecção, que realiza em todo o país as vistorias que aprovam os novos centros de inspecção e os que fizeram alterações nas suas instalações. Para fiscalizar regularmente as cerca de 200 entidades espalhadas pelo Continente e fazer inspecções aos veículos nas estradas há três inspectores no Porto e quatro em Coimbra. Mas em cada uma destas delegações só existe um carro para este fim, o que só permite uma equipa, com um mínimo de dois elementos, saia de cada vez. Em Lisboa, a fiscalização não está separada por sectores (centros de Inspecção, escolas de condução e centros de exame) havendo uma dezena de profissionais para fiscalizar todos estes organismos. Mesmo assim o ano passado foram realizadas 578 acções inspectivas em centros de inspecções, tendo sido levantados 93 autos de contra-ordenação. O número de acções tem vindo a descer: foi de 655 em 2014 e de 611 em 2015. O IMT confirma que as verificações técnicas e vistorias e as acções de fiscalização em sentido estrito são “realizadas por uma equipa de mais de uma dezena de pessoas”. A escassez de meios humanos e materiais ocorre apesar de os centros de inspecção terem entregue o ano passado quase 21 milhões de euros ao IMT (70%) e à Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (30%) a título de contrapartida financeira. Esse montante quase quadruplicou face a 2012. Nessa altura os centros entregavam ao regulador 5% do valor de cada inspecção, percentagem que subiu para 15% a partir de 2015. O IMT diz que o aumento resultou de “investimentos acrescidos por parte do Estado nos sistemas de controlo e fiscalização, decorrentes do aumento significativo de intervenientes neste sector, numa óptica de reforço e melhoria da eficácia da regulação”.

O Número

20.975.374 euros

É o valor que os centros de inspecção tiveram que entregar o ano passado ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes (70%) e à Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (30%). Montante quase quadruplicou desde 2012, porque contrapartida passou de 5% do valor de cada inspecção para 15%

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