O império contra-ataca

E que tal a FCSH ser anfitriã de um grande debate público sobre Portugal e o império?

1. Portugal tem um problema com o império “perdido”: não o discute. É um problema que vai da Presidência da República à escola básica, passando pelos media. Fora da academia ou da arte, a questão mal existe. Enquanto isso, militantes de uma “Nova Portugalidade” com “250 milhões de pessoas” (isto é literal) fundam um movimento, estão na universidade pública, organizam uma conferência com o historiador Jaime Nogueira Pinto, derradeiro voluntário do império (isto também é literal). Essa sessão, prevista para a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa (UNL) é cancelada pela direcção da faculdade. Seguem-se notícias confusas, acusações de censura. A direcção garante que a presença de Nogueira Pinto será reagendada, e o contactou nesse sentido. Mas só ao fim de dias esclarece que a Nova Portugalidade queria levar seguranças à sessão, e por isso a FCSH a cancelou. Ainda assim, a tese da censura rende: aos militantes do império, que de repente têm audiência; aos indignados instantâneos, que não entram em detalhes; e a quem lucra com isso. O “Expresso” anuncia na capa “O texto proibido”. Claro que não há texto proibido. O conferencista há-de falar, e que a voz não lhe doa. Nogueira Pinto lutou literalmente contra o 25 de Abril, mas o 25 de Abril fez-se para que ele continuasse a falar. Se a democracia nunca foi a sua convicção principal (“sou mais nacionalista do que democrata”), melhor que ele o diga. Graças ao que tem dito é que sabemos o que pensa. E até uma pequena parte do que faz, por exemplo em África.

2. Vale a pena lembrar a cronologia do caso (incluindo para quem está no Brasil ou em África, e portanto nos tais “250 milhões”).

— A conferência “Populismo ou Democracia? O Brexit, Trump e Le Pen em debate” é agendada para 7 de Março por estudantes da FCSH ligados ao movimento Nova Portugalidade, que para isso reservam uma sala da faculdade.

— A 2 de Março, uma Reunião Geral de Alunos (RGA) aprova uma moção para cancelar a reserva por esse movimento estar “associado a argumentos colonialistas, racistas, xenófobos”. Independentemente do número de votos (24 a favor, 4 contra, 3 abstenções), a associação de estudantes considera-se vinculada ao resultado.

— Dia 7, a direcção da faculdade anuncia que “decidiu cancelar o evento”, depois de “apreciada a ausência das indispensáveis condições de normalidade em que deveria ter lugar, com a dignidade que o convidado e o tema em discussão mereciam”. Sublinha que “não atribui responsabilidade à Associação de Estudantes, a qual nunca colocou em causa a conferência nem o conferencista”. Garante que Nogueira Pinto será convidado em breve a falar, e foi contactado. Mas o fantasma da censura já se agita, das redes sociais a Marcelo, que pede esclarecimentos, considerando o cancelamento absurdo. Ouvido, Nogueira Pinto designa os estudantes da Nova Portugalidade por “patriotas” e os da RGA por “maoístas ou do Bloco de Esquerda”.

— A 8 de Março, a associação de estudantes da FCSH anuncia ter sido “invadida por quatro dezenas de indivíduos afectos à extrema-direita, que se identificaram como tal” e “exigiram conhecer individualmente membros” da associação. “Fotos de dirigentes associativos foram publicadas em redes sociais da extrema-direita, sendo que 40 pessoas prometeram voltar em maior número.” Ou seja, estudantes passam a estar sob ameaça directa. Entretanto, o Partido Nacional Renovador (PNR), de extrema-direita, convoca uma manifestação na FCSH para dia 21. Ainda nesse dia, a reitoria da UNL nega que a liberdade de expressão esteja em causa e reitera que a conferência “foi adiada” para que o tema seja discutido “de forma alargada e objetiva num clima sereno”.

— No dia 11 o director da FCSH, Francisco Caramelo, esclarece: “[Os membros da Nova Portugalidade] exigiram-nos que houvesse polícia, antes e durante a conferência. Respondemos que trazer a polícia para dentro da faculdade não faz parte da nossa cultura.” Eles disseram: “Então, podemos levar 10 pessoas que estarão dentro da conferência para garantir a segurança”, lembra Caramelo. “Foi face a isso que a direcção da faculdade considerou que havia um grande potencial de risco. E é impensável que venha alguém exterior à faculdade garantir a nossa segurança.” A Nova Portugalidade contrapõe: contrataria “uma ou duas pessoas”, e “não tem, teve, ou terá ‘milícias’”, tal como “não conhece” quem invadiu a associação.

3. Estudei na FCSH há 30 anos. Foi angustiante vê-la suspeita de censura, e lamento que não tenha sido mais clara de imediato. Isso teria impedido a extrema-direita de se capitalizar como vítima, e a violência de penetrar. Fascistas, o ideal será que se enterrem sozinhos. É deixá-los falar, e para o que for crime há penas.

4. Não tenho contacto com Jaime Nogueira Pinto, mas é público que segurança privada será um tema que conhece. A empresa de segurança que co-fundou para actuar em África tem uma força de cinco mil indivíduos, baseada em Moçambique. Também é público que Nogueira Pinto se ofereceu para lutar pelo “Ultramar” na véspera do 25 de Abril, e chegou a Angola logo depois. O império foi não apenas uma firme ideologia como determinou a sua vida. Não hesitou ir quando acabava de ser pai. Perdida a batalha, seguiu para jogos de bastidores no tabuleiro africano (“Curei-me das coisas do império voltando a ele”). Maria José, sua mulher, que o acompanhou em 1974, definiu-o como um “urdidor”. Uma figura romanesca, enigmática, com a centelha de megalomania de quem se diz nas tintas até para a legalidade, quando se sobrepõe o que considera “legítimo”. Desde o Infante D. Henrique que um sopro de povo eleito faz singrar velas, e até hoje há quem o siga. Jaime Nogueira Pinto será um praticante dessa fé pelos meios agora possíveis. E a vocação dos impérios perdidos sem todo um debate pós-colonial é contra-atacarem.

5. Querem ver como? A Nova Portugalidade está no Facebook. Apresenta-se assim (li e pasmei): “Somos 250 milhões. A unir-nos, temos sangue e séculos, cultura e sentimento. Fomos forjados por gerações de homens de Estado, de combate e de inteligência. Entre os nossos maiores, contamos soldados e marinheiros, pintores e arquitectos, poetas e capitães. Temos uma música que é nossa e de mais ninguém. Temos uma língua — que é a terceira do Ocidente — e uma literatura. O que nos aproxima uns dos outros é também o que nos distingue dos restantes povos do globo. A Portugalidade é uma ideia e uma forma de estar. É uma civilização. Mais que uma constelação de Estados, o mundo português é uma aliança de povos com um passado partilhado e um futuro em comum. A sugerir a reaproximação entre nações de fala lusa está, mais que a economia, a necessidade — que é justa e natural — de reerguer uma família de povos que só por trágico equívoco se desfez. O que queremos resgatar é, pois, tudo – os feitos, os símbolos, os costumes, o idioma — o que nos irmana.”

6. Enquanto o presidente português tomar posse, como Marcelo há um ano, com mais um tributo aos “Descobrimentos” sem reconhecer os milhões de mortos e escravizados pelo império; enquanto o discurso público alimentar a irreflexão, e a incapacidade de um tributo mínimo aos apagados; enquanto a escola não falar do extermínio dos índios e dos seis milhões levados de África, mais os que depois morreram na guerra colonial, o essencial continuará por discutir. Que tal a FCSH, onde circula tanto pensamento pós-colonial, ser anfitriã de um grande debate público sobre Portugal e o império?

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