"Os governos lavam a cara nos seus países e deixam a má cara para Bruxelas"

Carlos Moedas olha para o Livro Branco da Comissão como uma oportunidade única de confrontar os governos europeus com as suas responsabilidades e encontrar um rumo para a futuro.

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"O mundo, em geral, está a crescer pouco, exactamente pelas políticas proteccionistas que, a continuarem, vão afectar ainda mais o crescimento", alerta Carlos Moedas jos Joao Silva - colaborador
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"Há hoje uma percepção da Europa de um negativismo totalmente exagerado. Quando olhamos para o crescimento e verificamos que estamos a crescer há 14 ou 15 trimestres", lembra o Comissário jos Joao Silva - colaborador

Foi secretário de Estado adjunto do Governo de Passos Coelho. Acompanhou em permanência a aplicação do programa de ajustamento. É o comissário que tutela uma pasta de enorme importância: a Ciência e a Inovação. Olha com preocupação para a Europa, como não podia deixar de ser. O PÚBLICO entrevistou-o na véspera do Conselho Europeu.

O Livro Branco tem tido reacções positivas? Correspondem às expectativas da Comissão?
Sem dúvida. Creio que marca um ponto de viragem, também na própria Comissão Juncker, que é uma Comissão política e que coloca perante a opinião pública um documento que está a ser discutido, não só pelos políticos mas também pelas pessoas comuns. São essas reacções que vamos recebendo também das pessoas, das universidades, de vários sectores da sociedade civil, que são interessantes. Algumas delas incidem no facto de o Livro Branco lhes trazer alguma clareza sobre o que a Europa faz e não faz. O presidente Juncker chamava a atenção, na véspera do Conselho Europeu, para este gap entre aquilo que se promete e aquilo que se pode fazer. O Livro Branco tem essa vantagem. Faz uma clarificação sobre quais são as opções, mesmo que aqueles que são mais europeístas, como eu, prefiram opções que sejam sempre de mais integração com todos. Mas essas são as opções de cada um. O que importa é que as pessoas possam fazer escolhas e que se chegue a uma decisão concreta, entre todos, sobre o que queremos fazer juntos e sobre o que não queremos fazer juntos.

Os governos apresentam-se às opiniões públicas nacionais como se Bruxelas tivesse a culpa de tudo. Com este Livro Branco, a Comissão quer contrariar essa ideia?
Sim. Essa realidade também se vê nas discussões do Conselho, que são muitas vezes diferentes das posições que, depois, os governos fazem chegar à Comissão. Lavam a cara nos seus países e deixam a má cara para Bruxelas. Isso é muito difícil de mudar. Leva anos.

A primeira coisa a fazer é aceitar que a Europa cada vez conta menos no mundo. O Livro Branco tem alguns gráficos muito interessantes que mostram isso mesmo. Hoje, somos 6% da população mundial, ou seja, cada um de nós não é nada. A Alemanha não é nada. Se olharmos para o que ela será dentro de 20 ou 30 anos, verificamos que será um pequeno país. Enrico Letta [antigo primeiro-ministro italiano] costuma dizer que, na Europa, há dois tipos de países: os que são pequenos e os que ainda não sabem que são pequenos. É com essa realidade que não queremos confrontar-nos.

Por outro lado, há hoje uma percepção da Europa de um negativismo totalmente exagerado. Quando olhamos para o crescimento e verificamos que estamos a crescer há 14 ou 15 trimestres...

Mas muito pouco.
Sim, mas o crescimento também tem de ser avaliado por comparação. Penso que o mundo, em geral, está a crescer pouco, exactamente pelas políticas proteccionistas que, a continuarem, vão afectar ainda mais o crescimento. Estamos a enfrentar uma quarta revolução industrial, a passar de um mundo físico para um mundo digital, as nossas sociedades estão a sofrer esta convulsão, levando a que a economia não esteja a crescer como gostaríamos. Mas a Europa, mesmo assim, está a crescer mais do que poderíamos imaginar há pouco tempo. Quando se olha para as previsões para os próximos três anos, vê-se que, pela primeira vez desde há muito tempo, todos os países da União vão crescer em 2018. O desemprego está no seu nível mais baixo desde o início da crise. Mesmo assim, mantém-se um sentimento generalizado de que continua a haver uma exclusão e uma desigualdade que foi criada pela globalização. Fizemos erros? Fizemos. Podemos fazer mais para corrigir essas desigualdades? Podemos. Penso que é essa a grande batalha da Comissão Juncker nos próximos tempos: como é que conseguimos clarificar aquilo que fazemos e como é que conseguimos reduzir essas desigualdades nas políticas europeias.

O que vemos é que em Paris e Berlim parece que só se interessam pelo cenário das várias velocidades. Como é que interpreta isto?
O cenário das várias velocidades já existe, com o euro ou com Schengen. Há cooperações reforçadas que já existem, por exemplo nos divórcios: hoje, um casal que seja de duas nacionalidades pode escolher qual é a lei que se aplica. Temos as patentes. É algo que já existe, mas um bocadinho ad hoc. A diferença do Livro Branco em relação às cooperações reforçadas é que é mais macro: o que vamos fazer em conjunto e o que não vamos fazer em conjunto. O Mercado Único, o digital?

Mas percebe a insistência de Paris e Berlim?
Acho que é, um pouco, reduzir o problema a apenas um ângulo. Pessoalmente, acho que devíamos todos avançar numa velocidade muito mais acelerada, mas acabo por ser uma voz minoritária, e reconheço que temos de ser pragmáticos. A Alemanha e a França estão a manter uma visão pragmática que, no momento em que vivemos, talvez seja uma das soluções possíveis e mais fáceis de construir. O que também acho é que Portugal deveria estar sempre na linha da frente e que precisamos de discutir isso, sejam quais forem as velocidades. Mas essa será uma decisão que só os chefes de Estado e de Governo podem tomar. Por exemplo, queremos que a Europa tenha a responsabilidade total da negociação dos tratados comerciais? Então não podemos ter um parlamento da Valónia [região belga] a dizer que não quer.

O Governo já disse que quer estar na primeira velocidade, mas coloca algumas reservas, por exemplo, sobre a centralidade da zona euro, cuja reforma falta ainda concluir. Compreende esta posição?
Compreendo. Creio que essa questão da União Económica e Monetária ilustra bem o problema que hoje vivemos na Europa. Quando se olha para a crise financeira, vê-se que foi resolvida nos Estados Unidos de uma maneira muito directa, que precisou apenas de sete meses para reverter a situação. Era muito claro quem fazia o quê. Na Europa, passámos quase dez anos a discutir quem é que faz o quê. Continuamos a discutir a garantia de depósitos [o terceiro pilar da união bancária], portanto a discussão ainda não acabou. É um dos aspectos que ilustram a dificuldade que tivemos na crise financeira: fazes tu ou faço eu? É uma enorme dificuldade política, daí a importância do Livro Branco, para que isso fique claro de uma vez por todas. Mas, obviamente, no caso da união monetária percebo a posição do Governo português.

Há uma oposição muito forte a este cenário das várias velocidades nos países da Europa do Leste. Compreende esta posição?
O que não compreendo é que se queira continuar, evitando tomar qualquer decisão. Estas comemorações do Tratado de Roma são uma excelente oportunidade para os governos tomarem decisões. O pior é não decidir nada, continuar nesta situação em que vamos de crise para crise e em que ninguém parece saber como as resolver. Os países do Leste têm sempre, um bocadinho, a ideia de pensar que, se houver duas velocidades, são eles que ficam de fora. Posso perceber intelectualmente esse receio, mas são escolhas que vão ter de fazer. Preocupam-se em saber se estão na primeira ou na segunda velocidade. Eu preocupo-me com as suas escolhas, na Polónia ou na Hungria, que vão, muitas vezes, contra os valores europeus.

A Comissão não coloca o cenário da fragmentação, mas coloca o cenário do Mercado Único, que significaria um enorme recuo. Qual é a razão?
Penso que esse cenário [do Mercado Único] é muito importante, porque muita gente se deu conta do que ele significaria. Seria um mercado único de bens e serviços e significaria que os países, por exemplo, teriam uma qualidade do ar diferente entre si, o mesmo para a qualidade da água, regulamentações diferentes nas emissões. Em suma, uma Europa muito pior para as pessoas. Isso ajuda a mostrar que o Mercado Único não resolve tudo, como muita gente diz ou pensa. Queremos abrir os olhos às pessoas. É essa a sua importância.

Muitas vezes se tem dito que a Comissão perdeu o seu brilho e que estamos numa fase em que o intergovernamental conta cada vez mais. Como é que responde a esta constatação?
Creio que nunca houve uma Comissão que tivesse passado por tantas crises simultâneas, desde os refugiados ao terrorismo, ao "Brexit", tudo ao mesmo tempo. A Comissão anterior viveu uma grande crise financeira que foi o princípio disto tudo. Porém, temos estado a viver um cenário de crises simultâneas que é muito difícil. Creio que esta Comissão se tem diferenciado por ser uma Comissão mais política e por ter tomado decisões mais políticas, contra o gosto de muitos países, que pensam que é como um mero órgão técnico. Mas não há dúvida de que estamos a passar por um momento de grandes dificuldades. Nunca esperei ser comissário numa altura em que um país deixa a União Europeia. Nunca pensei ser comissário e ver aquilo que vi em relação aos refugiados e o drama humano de pessoas a morreram aos milhares no Mediterrâneo. Mas tudo aquilo que fizemos acabou por não ser reconhecido. A coragem do presidente Juncker, quando lançou a Guarda Costeira europeia, que toda a gente achava que era péssima mas que já está em funcionamento. Os recursos que colocámos no terreno para salvar as pessoas do mar. Mais 400 mil pessoas podiam ter morrido sem essa intervenção, mas disso ninguém fala. Vivemos num período tão difícil que se torna igualmente difícil fazer essa avaliação que mencionou. Daqui a dez anos podemos olhar para trás e pensar se podíamos ter feito ainda mais, ou se devíamos ter feito menos. Creio que chegou o momento de fazer algumas escolhas muito concretas. Se conseguimos fazê-las nos próximos dois anos, a Comissão Juncker ficará na História por ter a coragem de colocar as opções que temos em cima da mesa, forçando os países a fazerem a sua escolha, em vez de se colocarem outra vez atrás da Comissão.

A Comissão deve agora completar este trabalho com alguns policy papers sobre as principais prioridades. Em que é que isto se traduz na prática?
O primeiro, que é o mais importante e que vai sair em Abril, é um paper de reflexão sobre o pilar social da Europa. A Europa tem de continuar a diferenciar-se por ser uma Europa social. Um dos homens que têm pensado mais sobre isso, e com o qual tenho tido muitas conversas, é Pascal Lamy [chefe de gabinete de Delors, director-geral da OMC, presidente honorário da Notre Europe], que está sempre a frisar este conceito de que estamos no melhor lugar do mundo para “civilizar a globalização”, de como é que a Europa consegue civilizar a globalização no sentido de a tornar menos desigual. Toda a gente quer vir para a Europa, porque temos um pilar social único. Mas convém debater como vamos conseguir mantê-lo: é essa a grande questão.

Quanto aos outros papers, serão sobre a globalização “civilizada", a UEM, a defesa, permitindo maior detalhe sobre as diferentes opções. O grande objectivo seria aproveitar este ano para reflectir e escolher, antes de iniciarmos em 2018 as nossas propostas para o novo orçamento plurianual depois de 2020. Era bom termos já uma ideia sobre a Europa que queremos.

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